segunda-feira, 19 de novembro de 2018

Brasil: Por que a Lei das Inelegibilidades não contempla o caso do presidente da República afastado do cargo ? Origem histórica e sentido da inabilitação


Causa estranheza para muitos o fato de a Lei das Inelegibilidades (LC nº 64/1990) omitir a perda de mandato pelo presidente da República como causa de inelegibilidade. Nas palavras de Tito Costa, “o Presidente e o Vice-Presidente da República ficaram excluídos do rol desse tipo de inelegibilidade, o que não deixa de ser estranho, pois representa um tratamento diferenciado, por parte do legislador, em relação ao ocupante do mais alto posto eletivo do país” (2004, p. 222).   
De fato, as consequências jurídicas da perda do cargo público por infringência da Constituição não são tratadas pela ordem jurídica brasileira nos mesmos termos se quem perde o cargo é o presidente da República ou se são os governadores, prefeitos e parlamentares nas três esferas.
 Governadores, prefeitos e parlamentares que perdem seus cargos por infringência de determinados preceitos da Constituição Federal, ou de Constituições Estaduais ou de Leis Orgânicas municipais, conforme o caso, tornam-se inelegíveis por oito anos, por força do disposto na Lei das Inelegibilidades (Lei Complementar nº 64/1990, art. 1º, I, b e c).
Porém, a LC nº 64/1990 silencia quanto ao presidente da República. A razão de ser dessa omissão é que as consequências da perda de mandato pelo presidente da República estão previstas na própria Constituição.
De acordo com a cláusula de imunidade penal temporária contida no art. 86, § 4º, da Constituição, o presidente da República, na vigência de seu mandato, não pode ser responsabilizado por atos estranhos ao exercício de suas funções.
Já certas condutas praticadas pelo presidente no exercício de suas funções podem vir a ser qualificadas como crimes de responsabilidade.
Como assinalam Luiz Alberto David Araújo e Vidal Serrano Nunes Junior (2010, p. 354), os crimes de responsabilidade não são crimes, em sentido próprio, mas, na verdade, constituem infrações político-administrativas, cuja incidência enseja o chamado processo de impeachment.
     De acordo com o art. 85 da Constituição, são crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentem contra a Constituição Federal e, especialmente, contra: I - a existência da União; II - o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, do Ministério Público e dos Poderes constitucionais das unidades da Federação; III - o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais; IV - a segurança interna do País; V - a probidade na administração; VI - a lei orçamentária; VII - o cumprimento das leis e das decisões judiciais.
O parágrafo único desse artigo estabelece que esses crimes devem ser definidos em lei especial, que deve estabelecer as normas de processo e julgamento. Até o presente momento, essas matérias são ainda regidas pela Lei nº 1.079/1950.
A Constituição de 1988 estabelece que o Senado é competente para processar e julgar o presidente e o vice-presidente da República nos crimes de responsabilidade (art. 52, I), caso em que funcionará como presidente do Senado o do STF, “limitando-se a condenação, que somente será proferida por dois terços dos votos do Senado Federal, à perda do cargo, com inabilitação, por oito anos, para o exercício de função pública, sem prejuízo das demais sanções judiciais cabíveis” (grifo nosso, art. 52, parágrafo único).
      Essa previsão é tradicional em nosso direito, e em suas origens foi praticamente copiada da Constituição norte-americana de 1787.
A Constituição norte-americana de 1787, no art. I, seção 3, que trata do Senado, estabelece que: “Judgment in cases of impeachment shall not extend further than to removal from office, and disqualification to hold and enjoy any office of honor, trust or profit under the United States: but the party convicted shall nevertheless be liable and subject to indictment, trial, judgment and punishment, according to Law”.
Em tradução livre: “O julgamento em caso de impeachment não deve se estender além da destituição do cargo, e da desqualificação para ocupar e exercer qualquer cargo de honra, confiança ou lucro nos Estados Unidos: mas o condenado deverá todavia ser responsabilizado e sujeito a acusação, processo, julgamento e punição, de acordo com a Lei”.
    Na primeira Constituição republicana brasileira, de 1891, estava estabelecido no Capítulo III, que tratava do Senado, que competia ao Senado julgar o presidente da República, nos termos e pela forma por ela prescritos, não podendo “impor outras penas mais que a perda do cargo e a incapacidade de exercer qualquer outro sem prejuízo da ação da Justiça ordinária contra o condenado” (art. 33, § 3º).
      Depois da Constituição de 1891, as Constituições brasileiras que se seguiram continham disposições semelhantes (1934, art. 57, § 7º; 1937, art. 86, § 1º; 1946, art. 62, § 3º; 1967, art. 44, parágrafo único; 1969, art. 42, parágrafo único).
Previsão similar foi mantida, como visto, na Constituição de 1988 (art. 52, parágrafo único).
O que se passou então, quando da elaboração da LC nº 64/1990, é que o legislador complementar sequer cogitou tratar da inelegibilidade do presidente da República que haja perdido o mandato por crime de responsabilidade. Apenas, posteriormente, em 2010, a Lei da Ficha Limpa previu a inelegibilidade daquele que renuncia ao mandato para evitar o impeachment (alínea k do art. 1º, I, da LC nº 64/1990).
Isso seguramente por ter o legislador complementar considerado que a matéria já estava devidamente disciplinada na Constituição Federal, que ao prever a inabilitação por oito anos já excluía o ex-presidente da possibilidade de se candidatar a cargos eletivos durante esse período.
 Do exame da tramitação no Congresso do projeto de lei que deu origem à LC nº 64/1990 observa-se que não se cogitou de incluir o impeachment do presidente da República entre as hipóteses de inelegibilidade: A LC nº 64/90 foi originária do Projeto de Lei do Senado nº 21/1990 (Complementar), de autoria do senador Jarbas Passarinho [1]. Esse Projeto de Lei já não previa a inelegibilidade do presidente da República que haja perdido o mandato; aliás nem mesmo a dos governadores e prefeitos – apenas a dos membros do Poder Legislativo[2]. O projeto teve parecer favorável da Constituição de Constituição, Justiça e Cidadania, na forma do substitutivo apresentado pelo senador Francisco Rollemberg. Esse substitutivo previa a inelegibilidade “dos membros do Congresso Nacional, das Assembleias Legislativas, da Câmara Legislativa e das Câmaras Municipais que hajam perdido os respectivos mandatos”; e também do “Governador e o Vice-Governador de Estado e do Distrito Federal, o Prefeito e o Vice-Prefeito que perderam seus cargos eletivos”[3]. Esse formato foi mantido no Parecer nº 94, de 1990 da Comissão Diretora, que apresentou a redação do vencido para o turno suplementar do substitutivo ao PLS 21/1990[4], e no Parecer nº 95, de 1990, da Comissão Diretora, que apresentou a redação final do PLS 21/1990. E foi mantido no texto final da Lei Complementar nº 64/1990 (alíneas b e c do art. 1º, I).
A interpretação que tem prevalecido, e que é coerente com a referida origem histórica do dispositivo, embora não seja unânime, é a de que a inabilitação é mais restritiva de direitos do que a inelegibilidade. Enquanto a inelegibilidade excluiria o indivíduo unicamente da candidatura a cargos eletivos, a inabilitação vedaria o exercício de todas as funções públicas, incluídos aí, além dos cargos eletivos, os cargos de provimento efetivo (por concurso público) ou em comissão (de livre nomeação e exoneração), e os empregos públicos (nas empresas públicas, regidos pela CLT).
            Araújo e Nunes Junior (2010, p. 354) reforçam esse entendimento ao afirmar que a teor do art. 52, parágrafo único, da Constituição, “o presidente da República deve ser afastado do cargo, bem como impossibilitado de ocupar o mesmo ou qualquer outro cargo público pelo período de oito anos”.
Como se sabe, na história recente do nosso país, o desfecho do processo que levou ao impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff seguiu um rito discrepante da letra expressa da Constituição em matéria de inabilitação. De fato, durante o processo de impeachment, o presidente do STF, no exercício da função de presidente do Senado, deferiu um pedido de destaque, e desmembrou em duas a votação final do impeachment. Assim, foram votadas separadamente a cassação propriamente dita e a inabilitação, o que resultou no impeachment de Dilma Rousseff mas na rejeição da pena de inabilitação, o que permitiu a ela manter o direito de ocupar cargos públicos.



Referências:


ARAÚJO, L. A. D.; NUNES JUNIOR, V. S. Curso de direito constitucional. 14 ed. São Paulo: Saraiva, 2010.

COSTA, T. Recursos em matéria eleitoral. 8 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.



[1] Senado Federal. Secretaria de Informação Legislativa. Disponível em: <http://legis.senado.leg.br/legislacao/ListaNormas.action?tipo_norma=LCP&numero=000064&data=1990&SUBMIT1=Pesquisar>. Acesso em: 2 maio 2016.
[2] Anais do Senado, República, 1990, Livro 4, p. 1230. Disponível em: <http://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/pdf/Anais_Republica/1990/1990%20Livro%204.pdf>. Acesso em: 2 maio 2016.
[3] id., p. 1555.
[4] id., p. 1568.