segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Brasil : TSE decide pelo arquivamento das prestações de contas dos partidos apresentadas antes de 2009

        O Tribunal Superior Eleitoral deve explicações cabais à sociedade brasileira sobre o motivo pelo qual 45 balanços contábeis de partidos políticos apresentados ao Tribunal antes de 2009 deixaram de ser examinados e julgados, dando azo à decisão que autorizou seu arquivamento, tomada na terça-feira passada (23), por 4 votos a 3.
A prestação de contas à Justiça Eleitoral foi consagrada na Constituição Federal entre os princípios que regem a atividade dos partidos políticos (art. 17, III).
            Esse artigo da Constituição foi regulamentado pela Lei dos Partidos Políticos (Lei nº 9.096/95). Ela prevê que os partidos têm o dever de prestar contas até o dia 30 de abril de cada ano, detalhando receitas e despesas relativas ao ano anterior (art. 32). 
             O partido que comprovadamente deixa de prestar as devidas contas à Justiça Eleitoral pode vir a ter o registro civil e o estatuto cancelados pelo TSE, após decisão transitada em julgado em processo que assegure ampla defesa (art. 28). 
            O balanço contábil do órgão nacional dos partidos políticos deve ser apresentado ao Tribunal Superior Eleitoral, o dos órgãos estaduais aos Tribunais Regionais Eleitorais e o dos órgãos municipais aos Juízes Eleitorais (art. 32, § 1º, da Lei nº 9.096/95).
Uma vez analisadas, as prestações de contas podem ser aprovadas, aprovadas com ressalvas ou desaprovadas.
A sanção aplicável quando as contas partidárias são desaprovadas total ou parcialmente é a suspensão do repasse de novas quotas do Fundo Partidário, sanção essa que “deverá ser aplicada de forma proporcional e razoável”, pelo período de 1 a 12 meses, ou por meio do desconto, do valor a ser repassado, da importância apontada como irregular (art. 37, § 3º, da Lei nº 9.096/95, incluído pela minirreforma eleitoral de 2009, Lei nº 12.034).
Esse mesmo § 3º do art. 37 prevê que não seja aplicada a sanção de suspensão do repasse de novas quotas do Fundo Partidário caso a prestação de contas não tenha sido julgada em até 5 anos da sua apresentação.
Esse foi o fundamento legal invocado pelo TSE para justificar a sua decisão de autorizar o arquivamento por decisão monocrática das contas apresentadas até cinco anos atrás (antes de 2009) e ainda não julgadas.
Como visto, a desaprovação das contas tem consequências pecuniárias que não vão poder ser aplicadas a partidos cujas prestações de contas continham possíveis irregularidades, mas não foram julgadas. 
Nem se alegue que a Lei nº 12.034, que incluiu o § 3º no art. 37 só foi editada em 2009, e que antes disso não havia sanções para a desaprovação das contas. Não é verdade, pois a redação original da Lei nº 9.096/95 atribuía sanções até mais gravosas para a desaprovação das contas, o que foi sendo amenizado nas reformas de 1998 e de 2009.
De fato, a redação original do caput do art. 37 dizia “A falta de prestação de contas ou sua desaprovação total ou parcial, implica suspensão de novas quotas do fundo partidário e sujeita os responsáveis às penas da lei, cabíveis na espécie, aplicado também o disposto no art. 28”. O art. 28, como se viu, trata do cancelamento do registro civil e do estatuto do partido.
Em 1998, a Lei nº 9.693 deu nova redação ao caput do art. 37, suprimindo a referência ao art. 28, mas mantendo a suspensão de novas quotas do fundo partidário: “A falta de prestação de contas ou sua desaprovação total ou parcial implica a suspensão de novas cotas do Fundo Partidário e sujeita os responsáveis às penas da lei”.

 Sendo assim, antes de 2009, ano em que foi incluída a menção a aplicação “proporcional e razoável”, “pelo período de 1 a 12 meses”, “ou por meio do desconto (...) da importância apontada como irregular”, o regime jurídico da suspensão do repasse de novas quotas do fundo partidário não apenas já existia como atribuía margem de apreciação mais ampla à Justiça Eleitoral na aplicação dessa sanção.
Ora, o TSE dispõe de uma dotação orçamentária de mais de um bilhão e meio de reais por ano, como informa a própria Justiça Eleitoral. Não poderia ter se equipado de recursos humanos e materiais suficientes para fazer um exame célere e aprofundado de todas as prestações de contas dos partidos políticos ?

quinta-feira, 25 de setembro de 2014

Brasil : Novo livro – Lei da Ficha Limpa – Interpretação jurisprudencial

Acaba de sair meu novo livro, escrito em co-autoria com Luciano Caparroz Pereira dos Santos, pela Editora Saraiva. 
O advento da Lei da Ficha Limpa operou profundas transformações nas condições jurídicas de acesso aos cargos eletivos no Brasil. 
Nesse livro nós buscamos oferecer uma síntese das principais questões e dos principais argumentos debatidos no âmbito do Tribunal Superior Eleitoral sobre a Lei da Ficha Limpa nos julgamentos das impugnações aos pedidos de registro de candidatura para a eleição municipal de 2012, a primeira em que a lei foi aplicada.
       Vivemos um momento de importância histórica na evolução do direito eleitoral brasileiro. Nos julgamentos pelo TSE dos recursos interpostos no decorrer dos processos de registro de candidatura de 2012 foram lançadas as bases e as balizas que vão orientar de agora em diante a interpretação dos dispositivos da Lei da Ficha Limpa que alteraram a Lei das Inelegibilidades.
O leitor encontrará na referida obra um resumo de cada decisão, mais completo do que as ementas elaboradas pelo Poder Judiciário. Nesse resumo é relatado o histórico do processo, os fatos, as alegações das partes e os fundamentos da decisão.  
         São tratadas questões polêmicas suscitadas nos recursos, como a retroatividade da lei e a presunção de inocência.
Grande parte dos julgados refere-se à famosa alínea g, que trata da inelegibilidade por rejeição de contas relativas ao exercício de cargos, empregos ou funções públicas. Discute-se, entre outras questões, o sentido da expressão “ato doloso de improbidade administrativa” a qualificar a rejeição das contas, bem como a competência para julgar as contas dos prefeitos municipais quando agem como ordenadores de despesas.

      O livro há de interessar advogados, juízes, membros do Ministério Público, servidores da Justiça Eleitoral e do MP Eleitoral, estudantes de direito, políticos, jornalistas e cidadãos interessados nos rumos do País.

quarta-feira, 24 de setembro de 2014

França : Eleições indiretas para o Senado no próximo dia 28

          Um colégio eleitoral composto por cerca de 145.000 grandes eleitores irá eleger no próximo domingo (28) 178 dos 348 senadores na França. A eleição para o Senado é indireta.
            O mandato para o Senado na França é de seis anos. A cada três anos metade do Senado é renovada. A idade mínima para ser candidato ao Senado na França é 24 anos.
Forma de votação
            O Estado francês é um Estado unitário (e não federal), mas a administração é descentralizada. As “coletividades territoriais” são organizadas em três níveis: as regiões, os departamentos e as comunas[1].
     A circunscrição eleitoral para eleição dos senadores corresponde ao departamento. Assim, cada departamento elege um número de senadores proporcional a sua população. Em cada departamento se forma um colégio eleitoral.
Composição do colégio eleitoral
            O colégio eleitoral que vota para eleger os senadores é composto por quase todos os titulares de mandato eletivo.
            A composição do colégio eleitoral, nas palavras do Código Eleitoral, assegura, em cada departamento, a representação das diferentes categorias de coletividades territoriais e da diversidade das comunas, levando em consideração a população que ali reside.
            Esse colégio eleitoral é composto : dos deputados e dos senadores ; dos conselheiros regionais da seção departamental correspondente ao departamento em questão ; dos conselheiros gerais ; dos delegados dos conselhos municipais.
          95% dos membros do colégio eleitoral são delegados dos conselhos municipais. Isso porque, na França, país com cerca de 66 milhões de habitantes, há um grande número de municípios (comunas), cerca de 36.681. Desses, mais de 31.500 são comunas rurais, com menos de 2.000 habitantes.
O número de delegados dos conselhos municipais no colégio eleitoral é proporcional ao número de conselheiros, que por sua vez é proporcional à população de acordo com faixas estabelecidas pelo Código Eleitoral (um a quinze delegados nas comunas de menos de 9.000 habitantes ; de 29 a 69 delegados nas comunas de 9.000 a 30.000 habitantes ; acima de 30.000 habitantes, um delegado por faixa de 800 habitantes).
Razões para a eleição indireta
A sobrerrepresentação das pequenas comunas rurais no colégio eleitoral repercute na composição do Senado, que tende a ter perfil mais conservador. 
            Nas palavras de Francis Hamon e Michel Troper[2], “os membros da câmara alta são por vezes apresentados como ‘os eleitos do centeio e da castanha’, segundo a expressão do politicólogo Maurice Duverger. Os defensores do Senado em sua forma atual (...) [consideram que] o bicameralismo perderia uma parte de seu sentido se (...) o modo de composição da segunda câmara fosse quase idêntico ao da primeira. Segundo eles, a especificidade do recrutamento senatorial cumpre uma função estabilizadora e o bicameralismo perderia sua justificação se o Senado fosse um ‘clone’ da Câmara dos Deputados”.  



[1] Para explicações mais detalhadas, ver meu Direito eleitoral comparado – Brasil, Estados Unidos, França, Saraiva, São Paulo, 2009, p. 346 e s.
[2] Droit constitutionnel, 28ª ed., L.G.D.J., Paris, 2003, p. 627.

segunda-feira, 22 de setembro de 2014

EUA : Polêmica renúncia à candidatura ao Senado no Estado do Kansas

          Um fato sem precedentes na história eleitoral do Estado norte-americano do Kansas, ocorrido este mês, nos leva a conhecer diversos aspectos do direito eleitoral dos Estados Unidos.
           Em 03.09.2014, Chad Taylor, candidato do Partido Democrata ao Senado dos EUA pelo Estado do Kansas, renunciou formalmente à candidatura. Ao que tudo indica, o gesto teve o objetivo de favorecer a candidatura do independente Greg Orman, único capaz de derrotar o candidato do Partido Republicano, Pat Roberts, nas eleições de 4 de novembro.
1-) Candidaturas independentes são admitidas nos EUA
        Nesse episódio, chama atenção em primeiro lugar o fato de que para se candidatar ao Senado pelo Kansas a filiação partidária não figura entre as condições de elegibilidade. Dito de outro modo, são permitidas candidaturas independentes.
             Para concorrer como candidato independente, é preciso ter encaminhado ao Secretário de Estado do Kansas até 4 de agosto um abaixo-assinado contendo assinaturas em número não inferior a cinco mil eleitores do Estado. Cada eleitor só pode apoiar um único candidato. Os abaixo-assinados são feitos em papel, não são admitidas assinaturas pela internet. Filiados a partidos políticos não podem concorrer como independentes.  
            Candidatos independentes não participam da eleição primária, e se habilitam para a eleição geral de 4 de novembro apenas apresentando o referido abaixo-assinado.
2-) As eleições primárias para o Senado dos EUA no Kansas
              As eleições primárias são destinadas a definir o candidato que vai concorrer, entre outros cargos, ao Senado, por cada um dos principais partidos (Democrata e Republicano). A eleição primária no Kansas ocorreu este ano em 5 de agosto.
            Há dois caminhos para alguém conseguir aparecer na cédula da eleição primária no Kansas como candidato a candidato ao Senado por cada um dos partidos. O primeiro é ter apresentado até 1º de junho ao Secretário de Estado um abaixo-assinado contendo assinaturas em número não inferior a 1% do total de filiados ao respectivo partido; ou ter apresentado até 1º de junho ao Secretário de Estado uma declaração de intenção de ser candidato, mais o pagamento de uma taxa equivalente a 1% do salário anual de um senador.
            No Estado do Kansas a eleição primária é do tipo fechado, o que significa que na primária de cada partido só são admitidos eleitores filiados ao partido em questão. O presidente de cada partido pode permitir que eleitores independentes, não filiados a nenhum partido, votem na eleição primária do seu partido. Mas em nenhuma hipótese um eleitor pode votar na eleição primária de mais de um partido.
            Chad Taylor venceu a primária do Partido Democrata para o Senado com 53% dos votos, tendo obtido 34.390 votos, contra 47% e 30.557 votos do segundo colocado, Patrick Wiesner.
            A primária do Partido Republicano foi vencida pelo atual senador pelo Estado do Kansas, Pat Roberts, com 48,1% e 125.306 votos.
3-) A polêmica renúncia
            Em 3.09.2014, Taylor dirigiu uma carta ao Secretário de Estado do Kansas retirando-se da disputa, sem detalhar as razões da decisão.
            O Secretário de Estado, o republicano Kris Kobach, considerou que a renúncia de Taylor não atendia aos requisitos previstos em lei. A lei estadual do Kansas prevê que um candidato só pode renunciar à candidatura se se declarar incapaz de exercer o mandato, o que segundo Kobach não teria sido escrito expressamente por Taylor na carta de renúncia.
            A questão foi levada à Suprema Corte do Kansas. O advogado de Taylor argumentou que a lei não determina que o Secretário de Estado possa discricionariamente indeferir o pedido de renúncia, e que a lei estadual não diz expressamente que a declaração de incapacidade tem de ser feita por escrito.
            A Suprema Corte do Kansas decidiu em 18.09.2014 que o nome de Taylor deveria ser suprimido da cédula da eleição geral em 4 de novembro.
            O Secretário de Estado decidiu então que iria ordenar ao Partido Democrata do Kansas que indicasse outro candidato até o próximo dia 26.

            A questão de saber se o Partido Democrata tem ou não o dever jurídico de nomear outro candidato foi levada em seguida à Suprema Corte do Kansas, que vai julgar a questão nos próximos dias. 

quinta-feira, 18 de setembro de 2014

Brasil : Voto nulo (II) – Por decisão da Justiça Eleitoral

             Além do voto nulo por ato do eleitor, do qual tratamos no post anterior, existe também no direito eleitoral brasileiro a possibilidade de que votos dados pelo eleitor a determinado candidato sejam declarados nulos ou sejam anulados pela Justiça Eleitoral.
            De acordo com o art. 220, é nula a votação:  I - quando feita perante mesa não nomeada pelo juiz eleitoral, ou constituída com ofensa à letra da lei;  II - quando efetuada em folhas de votação falsas; III - quando realizada em dia, hora, ou local diferentes do designado ou encerrada antes das 17 horas;  IV - quando preterida formalidade essencial do sigilo dos sufrágios; V - quando a seção eleitoral tiver sido localizada com infração do disposto nos §§ 4º e 5º do art. 135. 
            De acordo com o art. 221, é anulável a votação: I - quando houver extravio de documento reputado essencial;  II - quando fôr negado ou sofrer restrição o direito de fiscalizar, e o fato constar da ata ou de protesto interposto, por escrito, no momento; III - quando votar, sem as cautelas do Art. 147, § 2º:  a) eleitor excluído por sentença não cumprida por ocasião da remessa das folhas individuais de votação à mesa, desde que haja oportuna reclamação de partido; b) eleitor de outra seção, salvo a hipótese do Art. 145; c) alguém com falsa identidade em lugar do eleitor chamado.
        O art. 222 estabelece que é também anulável a votação, quando viciada de falsidade, fraude, coação, uso de meios de que trata o Art. 237, ou emprego de processo de propaganda ou captação de sufrágios vedado por lei.
            Além desses dispositivos do Código Eleitoral, outros há no ordenamento jurídico que estabelecem a cassação do diploma ou a perda do mandato eletivo pelo cometimento de irregularidade atentatória à lisura do pleito, e a consequente anulação dos votos dados ao candidato vencedor da eleição e condenado pela Justiça Eleitoral.
Cumpre mencionar as hipóteses de abuso do poder econômico, corrupção ou fraude, a fundamentar a propositura de Ação de Impugnação de Mandato Eletivo, prevista na Constituição (art. 14, § 10) ; de irregularidade relativa à arrecadação e aos gastos de recursos em campanhas eleitorais (art. 30-A da Lei nº 9.504/97) ; de captação ilícita de sufrágio (art. 41-A da Lei nº 9.504/97) ; da prática de condutas vedadas a agentes públicos em campanhas eleitorais (art. 73, § 5º, da Lei nº 9.504/97).
São dispositivos que visam a assegurar a sinceridade do escrutínio, e que partem do princípio de que há ocorrências que tornam inválida a manifestação do eleitor, embora ele tenha escolhido esse ou aquele candidato. E que conferem à Justiça Eleitoral o poder de declarar nula a votação ou de anulá-la, e de determinar a cassação do diploma do eleito ou a perda do mandato eletivo.
            Há que se mencionar ainda a possibilidade de perda do mandato eletivo em razão de indeferimento do pedido de registro de candidatura, pela ausência de uma das condições de elegibilidade previstas na Constituição (art. 14, § 3º) ou por incidência de alguma das causas de inelegibilidade previstas na LC nº 64/90 (Lei das Inelegibilidades), com redação dada pela LC nº 135/10 (Lei da Ficha Limpa).
            Como dito, a condenação pela Justiça Eleitoral com fundamento em qualquer dessas hipóteses gera a anulação dos votos dados ao candidato, que pode já ter sido eleito e estar no pleno exercício do mandato eletivo obtido irregularmente.         
            Nas eleições majoritárias, para a chefia do Poder Executivo nas três esferas (presidente, governador e prefeito), sempre que a nulidade da votação, nulidade essa reconhecida pela Justiça Eleitoral, com base em qualquer dos referidos fundamentos, atingir mais de metade dos votos, deve ser marcada nova eleição, denominada suplementar.
            É o que se depreende do disposto no art. 224 do Código Eleitoral:
Art. 224. Se a nulidade atingir a mais de metade dos votos do país nas eleições presidenciais, do Estado nas eleições federais e estaduais ou do município nas eleições municipais, julgar-se-ão prejudicadas as demais votações e o Tribunal marcará dia para nova eleição dentro do prazo de 20 (vinte) a 40 (quarenta) dias.
Houve quem alegasse a inconstitucionalidade superveniente do disposto no art. 224 do Código. Isso porque o disposto nesse artigo não teria sido recepcionado pela ordem constitucional instaurada em 1988. O fundamento seria a norma contida no art. 81 da Lei Maior: “Vagando os cargos de Presidente e Vice-Presidente da República, far-se-á eleição noventa dias depois de aberta a última vaga. § 1º -- Ocorrendo a vacância nos últimos dois anos do período presidencial, a eleição para ambos os cargos será feita trinta dias depois da última vaga, pelo Congresso Nacional, na forma da lei. § 2º -- Em qualquer dos casos, os eleitos deverão completar o período de seus antecessores”.
Para os defensores da tese da inconstitucionalidade, a incompatibilidade entre os dois textos estaria no fato de que a Constituição não estabelece condições, como faz o art. 224 do Código, para a realização de nova eleição ; assim, seria sempre devida a realização de nova eleição, mesmo que o número de votos invalidados fosse inferior à metade, sendo inconstitucional a investidura do segundo colocado. 
Até o presente momento essa tese não foi acolhida pela maior parte da doutrina nem pela jurisprudência. Nas palavras de José Jairo Gomes[1], “enquanto o art. 224 cuida da validade da eleição, que é requisito indeclinável da proclamação dos resultados e diplomação dos eleitos, o artigo 81 estabelece critérios para o preenchimento dos cargos que alude em caso de vacância ocorrida durante o exercício do mandato, pressupondo, portanto, que os cargos já estejam regularmente preenchidos e seus titulares devidamente investidos. Na verdade, o artigo 81 visa evitar que haja vácuo no poder estatal em razão de vicissitudes ocorridas durante o exercício do mandato que levam à vacância deste. A investidura em cargo público-eletivo decorre da diplomação, a qual requer a proclamação do eleito e a validade da eleição. Destarte, tais dispositivos operam em momentos lógica e juridicamente inconfundíveis, regulando situações diversas, sendo impossível haver conflito normativo entre eles. O conflito, se houver, é meramente aparente.”
Segundo essa maneira de ver, o art. 224 do Código foi recepcionado pela Constituição de 1988, sendo correta a interpretação a contrario sensu desse artigo, segundo a qual se os votos anulados do vencedor forem inferiores à metade, os votos dos demais candidatos permanecem válidos, e a vitória deve ser atribuída ao segundo colocado.
Além da constitucionalidade, a legitimidade dessa solução também já foi posta em dúvida, pela razão de que a eleição suplementar teria a finalidade de evitar que a minoria assumisse o poder, devendo ser prestigiado o princípio da maioria; e também porque o segundo colocado não foi eleito, não devendo assumir a chefia do Poder Executivo, sendo necessária a realização de novo certame político. Porém, há que se levar em conta a ponderação feita por José Jairo Gomes [2]  : “a chapa vitoriosa só o foi em virtude do benefício propiciado pelo abuso de poder, do qual decorreu a anulação dos votos e a conseqüente extinção dos mandatos. Não fosse isso, é razoável pensar que o segundo colocado teria se sagrado vencedor ; só não o foi porque as eleições ficaram desequilibradas em seu desfavor. E mais: com a anulação, deixam os votos de ser computados para todos os efeitos, avultando a posição do segundo colocado que, na verdade, passa a ocupar o primeiro lugar do certame”.
Note-se que o art. 224 do Código foi redigido tendo em vista eleições majoritárias decididas por maioria simples, em um turno só, como ocorria na época em que o Código entrou em vigor; porém a Constituição de 1988 prevê a realização de eleições em dois turnos, razão pela qual o TSE teve que esclarecer se o art. 224 do Código aplica-se à hipótese anulação de votos por abuso cometido em eleição decidida em dois turnos.
Para as eleições gerais de 2014, o TSE dispôs, por meio da Resolução nº 23.399/13, relativa aos atos preparatórios para as eleições, que “se houver segundo turno e dele participar candidato que esteja sub judice e que venha a ter o seu registro indeferido posteriormente, caberá ao Tribunal Eleitoral verificar se, com a nulidade dos votos dados a esse candidato no primeiro turno, a hipótese é de realizar novo segundo turno, com os outros dois candidatos mais votados no primeiro turno, ou de considerar eleito o mais votado no primeiro turno; se a hipótese for de realização de novo segundo turno, ele deverá ser realizado imediatamente, inclusive com a diplomação do candidato que vier a ser eleito” (art. 222, IV).
Tudo o que foi dito, como visto, refere-se às eleições para a chefia do Poder Executivo nas três esferas.
Quanto à eleição para o Senado, a questão é raramente debatida, mas entendo que se aplica o art. 224 do Código Eleitoral. Trata-se de eleição majoritária, que obedece ao princípio da maioria simples (como eram aliás as eleições para chefia do Executivo na época em que o art. 224 foi redigido). Note-se que o art. 224 diz “Se a nulidade atingir a mais de metade dos votos (...) do Estado nas eleições federais e estaduais (...) (grifamos). Ora, a eleição para o Senado é uma eleição em que a circunscrição eleitoral é o Estado, mas é uma eleição para cargo federal, hipótese que foi expressamente contemplada na letra do dispositivo. Sendo assim, se o candidato vencedor tiver obtido mais da metade dos votos, excluídos os brancos e nulos, e essa votação vier a ser anulada pela Justiça Eleitoral, deve ser convocada nova eleição. Se a votação for inferior à metade, o segundo colocado será sagrado vencedor.
 Nas eleições proporcionais (deputado federal, deputado estadual e distrital, vereador), em que concorrem candidatos em grande número, não há que se cogitar de vitória obtida com mais de 50% dos votos na circunscrição. Nessas eleições, se o pedido de registro é indeferido depois da eleição, ou se o parlamentar tem o diploma ou o mandato cassados por irregularidade cometida na campanha eleitoral, os votos respectivos são anulados e procede-se ao recálculo do quociente eleitoral. 
  


[1] Direito Eleitoral, 10ª ed., Atlas, São Paulo, 2014, p. 688.
[2]  Id., p. 690.

quarta-feira, 17 de setembro de 2014

Brasil : Voto nulo (I) – Por ato do eleitor

               No direito eleitoral brasileiro, existem duas espécies de voto nulo : voto nulo por ato do eleitor e voto nulo por decisão da Justiça Eleitoral.
                 No presente post trataremos do voto nulo por ato do eleitor.
            O eleitor anula seu voto quando, por erro, por atitude de protesto ou por simples despolitização, comparece ao local de votação, simula o ritual da votação, mas inutiliza a cédula (impressa ou eletrônica), de modo que seu voto vai para ninguém.
            No tempo da cédula de papel, havia o receio de que os votos em branco fossem fraudulentamente preenchidos, no momento da apuração. Por essa razão, os eleitores descontentes optavam por anular o voto, com rabiscos, palavras de protesto, etc., no lugar do nome ou número do candidato.
            Desde o advento da urna eletrônica, para votar nulo basta digitar um número que não corresponda ao de nenhum candidato, como, por exemplo, 00, e confirmar.
            A urna eletrônica tem a opção voto em branco, ao que tudo indica sem os referidos inconvenientes, que pesavam contra o voto em branco no tempo da cédula de papel.
            Hoje em dia, tanto o voto nulo quanto o voto em branco são desconsiderados no cômputo dos resultados, tanto nas eleições majoritárias (presidente, governador, prefeito e senador) quanto nas proporcionais (deputado federal, deputado estadual e distrital, vereador).
            Nas eleições para a chefia do Poder Executivo nas três esferas (presidente da República, governador de Estado e prefeito municipal), que se dá por maioria absoluta (exceto nos municípios com menos de duzentos mil eleitores, art. 29, II da Constituição), com a possibilidade de haver segundo turno, a Constituição diz expressamente que não serão computados os votos em branco e os nulos (art. 77, § 2º; art. 28; art. 29, II).
            Assim, independentemente do número de votos brancos e nulos, e ainda que superior a 50%, será considerado vencedor aquele que obtiver a maioria absoluta dos remanescentes votos válidos, não importa o quão minoritários eles possam ser.
            Não há menção expressa na Constituição e nas leis sobre o destino dos votos brancos e nulos na eleição para o Senado. Mas, logicamente, como a eleição para o Senado é majoritária e se dá por maioria simples (Constituição, art. 46), vence o candidato mais votado, qualquer que seja o número de votos em branco e nulos.
            Quanto às eleições proporcionais (para a Câmara dos Deputados, Assembléias Legislativas, Câmara Legislativa do Distrito Federal e Câmaras Municipais), considerou-se até 1997, com base em dispositivo do vigente Código Eleitoral (de 1965), que os votos em branco (mas não os nulos) deveriam ser contados como válidos para a determinação do quociente eleitoral (parágrafo único do art. 106, revogado). Coube à Lei nº 9.504/97 (Lei das Eleições) revogar esse dispositivo. Ela estabelece expressamente que nas eleições proporcionaiscontam-se como válidos apenas os votos dados a candidatos regularmente inscritos e às legendas partidárias” (art. 5º), o que exclui os votos em branco e os nulos.
            Em resumo, os votos nulos, independentemente do número, são simplesmente descartados, sendo considerados apenas para fins estatísticos. Sendo assim, em qualquer número, não têm o condão de anular a eleição, seja ela majoritária ou proporcional.
            Diante de tal realidade, é de se estranhar o desserviço que prestou à nação o então presidente do TSE, Marco Aurélio Mello, em entrevista concedida ao programa Roda Viva, da TV Cultura, em 7 de agosto de 2006. Perguntado pelo jornalista Paulo Markun sobre a suposta anulação da eleição em razão de votos nulos, respondeu, incompreensivelmente, que  Nós temos uma regra que advém da Constituição Federal e diz respeito às eleições majoritárias para os cargos de governadores e presidente da República. Aí, o eleito precisa alcançar 50% dos votos válidos. A par dessa regra existe uma outra que é linear, que também repercute nas eleições proporcionais. Se os votos nulos e brancos alcançarem mais de 50%, nós temos a insubsistência de pleito. Mas eu não acredito que isso ocorra. A época é de definição, o eleitor precisa se definir, e não simplesmente projetar no tempo essa definição para uma outra data”.
            Com essa resposta, o Min. Marco Aurélio reforçou a falsa lenda de que votos nulos em número superior a 50% anulariam a eleição.
         Felizmente, o próprio Ministro Marco Aurélio desfez esse entendimento equivocado, em matéria do jornal Folha de S.Paulo, de autoria do jornalista Fernando Rodrigues, de 6 de setembro de 2006, intitulada “Voto nulo não invalida eleição, diz Marco Aurélio”. Quanto à eleição majoritária, disse Marco Aurélio "A Carta manda que o eleito para presidente tenha pelo menos 50% mais um dos votos válidos. Estão excluídos desse cálculo os brancos e os nulos. Mas se, por hipótese, 60% dos votos forem brancos ou nulos, o que não acredito que vá acontecer, os 40% de votos dados aos candidatos serão os válidos. Basta a um dos candidatos obter 20% mais um desses votos para estar eleito".