terça-feira, 29 de setembro de 2020

Novo livro: Direito Eleitoral – Temas da Atualidade

 

Este livrinho que acaba de sair pela Ed. Lumen Juris é uma continuação da obra “Anotações sobre Direito Eleitoral e outros temas”, publicada em 2017.

Ele reúne artigos que publiquei aqui no blog entre 2017 e 2020.

Nele são tratados temas da atualidade no direito eleitoral do Brasil, dos Estados Unidos e da França.

Os artigos relativos ao direito eleitoral brasileiro tiveram como fonte de inspiração o trabalho conjunto do MCCE-SP.

Sob a atenta coordenação da Professora Carmen Cecília de Souza Amaral (Caci), assuntos como combate à compra de votos, sim ou não às candidaturas avulsas, combate a fake news, lisura do financiamento eleitoral e participação das mulheres na política têm sido objeto da atuação do grupo.

Digo isso com a ressalva de que as opiniões externadas no livro são minhas pessoais e não necessariamente as do MCCE-SP.

No que concerne ao direito eleitoral dos Estados Unidos, são tratados temas candentes: desde questões relativas à redistritalização, como o fenômeno do gerrymandering, até evoluções do direito de voto, passando por discussões em torno dos Super PACs e por mudanças na forma de votação nas eleições primárias da Califórnia.

Os artigos relativos ao direito eleitoral francês, embora pouco numerosos — apenas dois – abordam aspectos significativos do sistema: o rigor com que os franceses tratam as prestações de contas de campanha e a promoção da paridade entre homens e mulheres na política.

quarta-feira, 20 de maio de 2020

Brasil: TSE entende ser aplicável reserva de gênero para mulheres nas eleições para órgãos partidários


Leia notícia publicada ontem no site do TSE:



Resposta foi dada na análise de consulta formulada pela senadora Lídice da Mata
Na sessão administrativa desta terça-feira (19), o Plenário do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) analisou uma consulta elaborada pela senadora Lídice da Mata (PSB-BA) sobre a possibilidade de que a regra de reserva de gênero de 30% para mulheres nas candidaturas proporcionais também incida sobre a constituição dos órgãos partidários, como comissões executivas e diretórios nacionais, estaduais e municipais. Os ministros da Corte Eleitoral entenderam ser possível a aplicação da regra também para as disputas internas dos partidos, embora esse entendimento não deva ter efeito vinculativo para a análise e a aprovação, por parte da Justiça Eleitoral, das anotações de órgãos partidários.
Em seu voto, a relatora da matéria e presidente do TSE, ministra Rosa Weber, argumentou que, se aos partidos políticos cabe observar um percentual mínimo de candidaturas por gênero para as disputas nas eleições proporcionais, a mesma orientação deve se aplicar aos pleitos para a composição de seus órgãos internos. Segundo a ministra, a não aplicação da regra dos 30% da cota de gênero simultaneamente nos âmbitos externo e interno das agremiações constituiria “um verdadeiro paradoxo democrático, não sendo crível que a democracia interna dos partidos políticos não reflita a democracia que se busca vivenciar, em última instância, nas próprias bases estatais”.
Assim, a relatora respondeu afirmativamente ao primeiro questionamento da consulta, afirmando que deve ser observada a reserva de vagas para candidaturas proporcionais prevista no parágrafo 3º do artigo 10 da Lei nº 9.504/1997 (Lei das Eleições) também para as disputas que tenham a finalidade de compor os órgãos internos dos partidos políticos.
Ao votar, o vice-presidente do TSE, ministro Luís Roberto Barroso, propôs que fosse encaminhado um apelo ao Congresso Nacional para que essa obrigatoriedade do cumprimento da reserva de gênero de 30% nas candidaturas dos órgãos internos de partidos seja incluída na legislação, com a previsão de sanções às legendas que não a cumprirem. Para o ministro, as sanções deveriam passar a ser aplicadas após a declaração de omissão legislativa nessa matéria. A proposta do ministro Barroso foi acolhida pela maioria dos ministros.
Segundo quesito

Quanto ao segundo questionamento, acerca do indeferimento dos pedidos de anotação dos órgãos de direção partidária que não tenham observado o percentual de 30%, a ministra Rosa Weber respondeu negativamente. Em seu entendimento, a afirmação do primeiro quesito da consulta ocorre “sem vinculatividade normativa, em caráter abstrato e sem natureza sancionatória”. Dessa forma, os pedidos de anotação dos órgãos de direção partidária de legendas que não tenham aplicado a reserva de 30% serão analisados, caso a caso, pela Justiça Eleitoral.
Em seu voto, o ministro Edson Fachin abriu divergência quanto à resposta ao segundo quesito, propondo que também ele fosse respondido afirmativamente. De acordo com o magistrado, não deveriam ser promovidas as anotações de órgãos de direção partidária cujas legendas não comprovem a observância da reserva de gênero na escolha de seus membros.
Os ministros Luís Roberto Barroso, Og Fernandes e Tarcisio Vieira de Carvalho Neto seguiram o voto da relatora. Acompanharam a divergência aberta pelo ministro Edson Fachin os ministros Luis Felipe Salomão e Sérgio Banhos.
RG/LC, DM
Processo relacionado: CTA 0603816-39

quarta-feira, 13 de maio de 2020

Brasil: Ações afirmativas em favor da participação das mulheres na política


Verdade seja dita: a política ainda é um ambiente inóspito para as mulheres. Se essa constatação é válida para todos os países do mundo, ou quase todos, no Brasil o quadro é ainda mais desfavorável.
O machismo culturalmente entranhado, fruto da nossa tradição patriarcal, está na origem da violência simbólica contra as mulheres, e em especial dos estereótipos negativos relacionados à sua participação política.
Os números confirmam a percepção do quase-monopólio masculino sobre a política: nas eleições de 2018, dos 513 deputados eleitos, apenas 77 são mulheres; dos 27 governadores eleitos, apenas um é mulher.
É preciso de uma vez por todas afastar a crença, muito difundida, de que competência e honestidade no exercício dos cargos públicos são os únicos critérios que importam, e que ser homem ou mulher não importa.
O fato é que a política sem mulheres não pode ser democrática. Elas representam mais da metade da população, e já ficou provado que políticos homens não tomam para si adequada e suficientemente a missão de implementar políticas que atendam às necessidades específicas do universo feminino.
A perspectiva das mulheres tem impacto decisivo em áreas fundamentais como saúde e segurança pública. Para dar um exemplo bastante convincente, evoquemos o decreto parlamentar que institui vagões de trens e metrôs exclusivos para mulheres no Rio de Janeiro. A iniciativa partiu da deputada estadual Martha Rocha (PDT-RJ), que foi sensível à necessidade de uma política pública específica para mulheres que usam o transporte público.
Há preconceitos e dificuldades que só são sentidos na pele pelas mulheres. Eles são invisíveis para os homens que ocupam cargos públicos. Por essa razão, é imperioso que se amplie a participação das mulheres na tomada de decisões sobre políticas públicas.
Para que mais mulheres tomem parte no processo político, ações afirmativas visam compensar a histórica desigualdade de oportunidades entre homens e mulheres no caminho até os postos de poder.
O compromisso de implementar mecanismos de ação afirmativa para incrementar a participação das mulheres nos processos decisórios teve origem na IV Conferência Internacional sobre a Mulher, que se realizou em Pequim, em 1995, e reuniu representantes de 189 países. 
Desse compromisso originou-se o Projeto de Lei nº 783/1995, de autoria da deputada Marta Suplicy (PT-SP), e assinado por mais 26 deputadas. O Projeto propunha uma cota mínima de 30% para candidaturas de mulheres no pleito de 1996. A proposta foi acolhida pelo relator, mas com uma redução para 20%. Assim, foi incorporada à Lei nº 9.100/1995, que estabeleceu normas para a realização das eleições municipais de 1996. Em seu art. 11, § 3º, que dispunha sobre as candidaturas para as Câmaras Municipais, determinava que “vinte por cento, no mínimo, das vagas de cada partido ou coligação deverão ser preenchidas por candidaturas de mulheres”. 
Em seguida, a proposta original incorporou-se ao texto da Lei das Eleições, de 1997 (Lei nº 9.504). Ficou estabelecido, no capítulo relativo ao registro de candidatos, que “do número de vagas resultante das regras previstas neste artigo [candidaturas para a Câmara dos Deputados, a Câmara Legislativa, as Assembleias Legislativas e as Câmaras Municipais], cada partido ou coligação deverá reservar o mínimo de trinta por cento e o máximo de setenta por cento para candidaturas de cada sexo” (art. 10, §3º). Em outras palavras, como o sexo feminino é ainda minoritário na política, a lei passou a determinar que pelo menos 30% dos candidatos de cada partido sejam mulheres.
Doze anos depois, alguns passos foram dados pela minirreforma eleitoral de 2009 (Lei nº 12.034). Em primeiro lugar, foram introduzidas mudanças na Lei dos Partidos Políticos (Lei nº 9.906/1995): Ficou estabelecido que ao menos 10% do tempo de propagada partidária seriam destinados a promover e difundir a participação política feminina; e que 5% dos recursos do Fundo Partidário seriam destinados à criação e manutenção de programas de promoção e difusão da participação política das mulheres.
Em segundo lugar, foi feita uma mudança na dicção do dispositivo da Lei das Eleições relativo à porcentagem obrigatória de candidatas mulheres: a expressão “deverá reservar” foi substituída por “preencherá”: “Do número de vagas resultante das regras previstas neste artigo, cada partido ou coligação preencherá o mínimo de 30% (trinta por cento) e o máximo de 70% (setenta por cento) para candidaturas de cada sexo”.
Após discussão sobre o sentido e o alcance dessa alteração, o TSE decidiu que ela não poderia ficar sem consequência, e conferiu a ela a seguinte interpretação:

"1. O § 3º do art. 10 da Lei nº 9.504/97, na redação dada pela Lei nº 12.034/2009, passou a dispor que, "do número de vagas resultante das regras previstas neste artigo, cada partido ou coligação preencherá o mínimo de 30% (trinta por cento) e o máximo de 70% (setenta por cento) para candidaturas de cada sexo", substituindo, portanto, a locução anterior "deverá reservar" por "preencherá", a demonstrar o atual caráter imperativo do preceito quanto à observância obrigatória dos percentuais mínimo e máximo de cada sexo"[1].

Acontece que essa regra do percentual mínimo de candidatas mulheres nas eleições proporcionais tem sido amplamente burlada pelos partidos e coligações. Autorizações de candidatura de mulheres com assinatura falsa, renúncia das candidatas depois do registro da candidatura, propaganda eleitoral inexistente e votação pífia, são algumas das práticas adotadas por partidos e coligações para apenas formalmente atender a exigência legal, registrando candidaturas femininas que na realidade não passam de ficção.
Diante desse quadro, a jurisprudência do TSE evoluiu. A princípio, o TSE considerava que bastava o mero atendimento formal à exigência legal, no momento do pedido de registro, ainda que no decorrer da campanha ficasse evidenciada a natureza fictícia das candidaturas femininas. É o que se depreende do que ficou assentado no julgamento do Recurso Especial Eleitoral nº 21.498[2], de 2013, assim ementado:

"Representação. Eleição proporcional. Percentuais legais por sexo. Alegação. Descumprimento posterior. Renúncia de candidatas do sexo feminino.
1. Os percentuais de gênero previstos no art. 10, § 3º, da Lei nº 9.504/97 devem ser observados tanto no momento do registro da candidatura, quanto em eventual preenchimento de vagas remanescentes ou na substituição de candidatos, conforme previsto no § 6º do art. 20 da Res.-TSE nº 23.373.
2. Se, no momento da formalização das renúncias por candidatas, já tinha sido ultrapassado o prazo para substituição das candidaturas, previsto no art. 13, § 3º, da Lei nº 9.504/97, não pode o partido ser penalizado, considerando, em especial, que não havia possibilidade jurídica de serem apresentadas substitutas, de modo a readequar os percentuais legais de gênero.
Recurso especial não provido".

Em 2015, o TSE reconheceu, acertadamente, que o vocábulo fraude, ensejador do cabimento de Ação de Impugnação de Mandato Eletivo, nos termos do art. 14, § 10, da Constituição, deve receber interpretação atualizada, que contemple as práticas fraudulentas que ocorrem nos dias de hoje, inclusive no que se refere às candidaturas fictas de mulheres, registradas pelos partidos junto à Justiça Eleitoral apenas para cumprir a cota legal.
Assim, no julgamento do Recurso Especial Eleitoral nº 149[3], ocorrido em 04.08.2015, o relator, Min. Henrique Neves da Silva, estimou que

"O que se narra na presente ação - cuja veracidade deve ser oportunamente verificada - é a existência de candidaturas fictícias lançadas apenas para atender os patamares exigidos pela legislação eleitoral. A análise de tais questões - inclusive no que tange ao eventual oferecimento de valores e vantagens para que as candidatas renunciassem - é matéria que, evidentemente, não pode ser aferida, nem mesmo apontada no início do processo de registro de candidaturas, pois os fatos que apontariam para a caracterização da alegada fraude teriam ocorrido também em período posterior ao do registro das candidatas.
Assim, por certo não se pode exigir que os temas que envolvem ações ou omissões praticadas ou incorridas no curso da campanha eleitoral sejam objeto de impugnação ao pedido de registro de candidatura ou ao DRAP.
Por outro lado, não há como impedir que tais temas sejam levados ao conhecimento e julgamento pela Justiça Eleitoral, com a observância do devido processo legal e das garantias da defesa, sob pena de manifesta contrariedade ao direito de ação e à inafastabilidade da jurisdição, insculpida no inciso XXXV do art. 5º da Constituição Federal. 
(...)
As antigas fraudes eleitorais estão sendo substancialmente eliminadas pela adoção dos mecanismos de votação e cadastramento eletrônico, sendo detectadas, porém, novas formas de se obter fins ilícitos por meio de processos legítimos ou por meio da prática de atos puramente fraudulentos.
Desse modo, a interpretação a ser dada ao vocábulo constitucional não pode prescindir a necessidade de seu conceito se adequar aos fatos da vida, de modo a garantir a própria forma normativa da Constituição.
(...)
Assim, no presente caso, os fatos apontados pelos recorrentes não podem ser considerados, a priori, como insuficientes para configurar hipótese de cabimento da ação de impugnação de mandato eletivo".

A minirreforma eleitoral de 2015 (Lei nº 13.165) instituiu um avanço importante, mas pretendeu limitar demasiado o seu alcance. Pela primeira vez, ficou estabelecido que uma porcentagem do montante do Fundo Partidário destinado pelos partidos ao financiamento de campanhas eleitorais deveria ser aplicado nas campanhas das candidatas mulheres (art. 9º). Porém, por outro lado, esse dispositivo limitava o campo de aplicação da regra apenas às três eleições seguintes à publicação da lei ; quanto ao referido percentual, o dispositivo fixava não apenas o piso (5%), mas também um limite máximo, de 15%. E não é só. O dispositivo previa também que nesse valor estavam incluídos os 5% dos recursos do Fundo Partidário destinados à criação e manutenção de programas de promoção e difusão da participação política das mulheres.
A constitucionalidade desses limites foi questionada pela Procuradoria Geral da República na ADI nº 5617. A PGR sustentou que eles contrariavam o princípio fundamental da igualdade. O limite máximo de 15%, para a PGR, produzia mais desigualdade e menos pluralismo nas posições de gênero. Quanto ao limite mínimo, enfatizou que o patamar de 5% dos recursos para as candidatas protegia de forma deficiente os direitos políticos das mulheres. Segundo a Procuradoria, o princípio da proporcionalidade só seria atendido se o percentual fosse de 30%, patamar mínimo de candidaturas femininas previsto em lei.
Em 15.03.2018, o STF decidiu, por maioria de votos, que a distribuição dos recursos do Fundo Partidário destinados às campanhas de candidatas mulheres deve ser feita na exata proporção das candidaturas de ambos os sexos. Deve, portanto, respeitar o patamar mínimo de 30% de candidatas mulheres previsto na Lei das Eleições.  O Plenário decidiu ainda que é inconstitucional a fixação de prazo para esta regra. E que a distribuição não discriminatória deve perdurar enquanto for justificada a necessidade de composição mínima das candidaturas femininas.
Em 03.10.18, em decisão proferida na modulação dos efeitos da decisão tomada na ADI 5617, o STF assegurou que os recursos voltados a programas de promoção da participação política das mulheres fossem adicionalmente transferidos para as contas individuais das candidatas, no financiamento de suas campanhas eleitorais, na eleição de 2018. 
Como se sabe, em 2015 decisão do Supremo baniu o financiamento de partidos e candidatos por pessoas jurídicas. Ato contínuo, em 2017, o Congresso Nacional criou o Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC), ampliando o financiamento público de campanhas eleitorais.
Considerando a decisão do STF sobre a destinação do Fundo Partidário, e a posterior criação do FEFC, um grupo de 14 parlamentares – 8 senadoras e 6 deputadas federais – dirigiu ao Tribunal Superior Eleitoral uma Consulta, indagando se a parcela do FEFC destinada às campanhas femininas e o tempo de rádio e TV deveria seguir o mínimo de 30% previsto nas chamadas cotas de gênero. 
As parlamentares sustentaram que “as ações afirmativas se justificam para compensar erros históricos do passado e para promover a diversidade a partir dos objetivos do Estado Democrático de Direito preconizados pela Constituição da República de 1988”.
Por decisão unanime, em 22.05.2018, o Plenário do TSE respondeu afirmativamente à Consulta. Confirmou que os partidos políticos devem reservar pelo menos 30% dos recursos do FEFC para financiar candidaturas femininas. O TSE também entendeu que o mesmo percentual deve ser considerado em relação ao tempo destinado à propaganda eleitoral gratuita no rádio e na TV.
Ao responder afirmativamente à Consulta, a relatora do caso, ministra Rosa Weber, disse que a mudança do cenário de sub-representação feminina na política não se restringe apenas a observar os percentuais mínimos de candidatura por gênero previstos em lei, mas exige sobretudo a imposição de mecanismos que garantam efetividade a essa norma.
Adotando fundamentação semelhante à utilizada pelo STF no julgamento da ADI nº 5.617, a ministra destacou que os partidos têm autonomia para distribuí-los desde que não transbordem os limites constitucionais. Ela assinalou que, em virtude do princípio da igualdade, não pode o partido político criar distinções na distribuição desses recursos baseadas exclusivamente no gênero.
Rosa Weber afirmou ainda que a única interpretação constitucional admissível ao caso é a que determina aos partidos políticos a distribuição de recursos públicos destinados às campanhas na exata proporção das candidaturas.
A ministra ressaltou que, embora a decisão do Supremo estivesse relacionada à distribuição de recursos do Fundo Partidário, a aplicação da mesma razão de decidir à consulta formulada ao TSE se torna ainda mais necessária em razão de o Fundo Eleitoral ser constituído exclusivamente com recursos públicos.
Na resposta ao questionamento das parlamentares sobre o tempo de rádio e TV, a ministra ressaltou que a inexistência de disposição normativa expressa sobre o assunto não inviabilizaria uma solução jurídica para o caso: “A carência de regramento normativo que imponha a observância dos patamares mínimos previstos na Lei das Eleições à distribuição do tempo de propaganda eleitoral  não obstaculiza interpretação extraída a partir de preceitos constitucionais que inviabilizem a sua implementação”.
Porém o que se viu nas eleições que se seguiram a essa decisão, as eleições gerais de 2018, foi estarrecedor.
Essas decisões do STF e do TSE, como é óbvio, foram proferidas com o própósito de favorecer uma participação mais igualitária das mulheres na política. Porém, nas eleições de 2018, o que se viu foi a mais profusa fraude de que se tem conhecimento. Os partidos valeram-se a mancheias de candidaturas fictícias, que ficaram conhecidas como “laranjas”.
Segundo pesquisa realizada por professoras de universidades americanas e inglesas, divulgada pela BBC-News, 35% de todas as candidaturas para a Câmara dos Deputados na eleição brasileira de 2018 não chegaram a alcançar 320 votos. Isso indica que foram candidatas que sequer fizeram campanha. Foram usadas para cumprir formalmente a lei de cotas. Essas candidaturas serviram, também, para receber recursos do FEFC e repassá-los a candidatos homens. Em alguns casos, os recursos foram destinados a candidatos homens a governador ou senador que tinham vice ou suplente mulher.
Em reportagem publicada em 04.02.2019, o jornal Folha de S.Paulo relatou o ocorrido com quatro candidatas do PSL nas eleições de 2018. Apesar de figurar entre os 20 candidatos do PSL no país que mais receberam dinheiro público, essas quatro mulheres tiveram desempenho insignificante. Juntas, receberam pouco mais de 2.000 votos, em um indicativo de candidaturas de fachada, em que há simulação de alguns atos reais de campanha, mas não empenho efetivo na busca de votos.
A Folha apurou que, dos R$ 279 mil repassados pelo PSL, ao menos R$ 85 mil foram parar oficialmente na conta de quatro empresas que são de assessores, parentes ou sócios de assessores de um dos hoje ministros de Estado.
Porém, o que as autoras da referida pesquisa concluíram é que essas práticas não se restringiram a uma ou algumas legendas. Em maior ou menor grau, todas aplicaram estratégias desse tipo.
Em resposta a essas revelações, parlamentares do PSL e do PSD – justamente os dois partidos com maior quantidade de candidatas laranjas – apresentaram projetos de lei que visam suprimir as cotas e o FEFC.
Essa no entanto não é a melhor solução. O que se espera é que haja fiscalização eficaz e punição severa aos partidos e aos políticos infratores.
Em 2019, o TSE decidiu, no julgamento do Recurso Especial Eleitoral nº 19.392, por quatro votos a três, pela cassação de todos os candidatos eleitos por uma coligação formada para a eleição proporcional, em um município do Piauí, na eleição municipal de 2016. O fundamento foi que sem candidaturas laranjas, o partido não teria cumprido as exigências para participar das eleições. Foram cassados os mandatos de todos os vereadores eleitos, independentemente de terem ou não participado diretamente da fraude.
Quanto ao “laranjal” de 2018, aguarda-se a manifestação da Justiça Eleitoral.
Um passo mais radical no sentido de ampliar a participação das mulheres na política foi dado em 2019, em São Paulo, com o lançamento de um projeto, coordenado pelo Ministério Público do Estado, em parceria com coletivos sociais.
Batizado de "Mais Mulheres na Política", o projeto pretende introduzir alterações na legislação eleitoral para que 50% das cadeiras (e não apenas das candidaturas) nas Casas Legislativas sejam reservadas a mulheres, e 25% desse montante estejam garantidas para mulheres negras. 
O projeto institui ainda o que o MP denomina "financiamento 2.0", ou "peso dois": uma maior distribuição do Fundo Partidário e do FEFC às siglas que elegerem mais mulheres. Essa medida estimularia os partidos a lançar candidaturas viáveis de mulheres, com chances reais de serem eleitas.

REFERÊNCIAS

AMORIM, Felipe. TSE decide que candidaturas laranjas levam à cassação de toda a chapa. UOL, 17 de setembro de 2019. Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2019/09/17/tse-decide-que-candidaturas-laranjas-levam-a-cassacao-de-toda-a-chapa.htm>. Acesso em: 13 maio 2020.

BIROLI, Flávia. Por que é importante ampliar o número de mulheres na política ? Gênero e Numero, 19 de setembro de 2018. Disponível em: <http://www.generonumero.media/a-politica-de-cotas-para-as-mulheres-no-brasil-importancia-e-desafios-para-avancar-2/>. Acesso em: 9 maio 2020.

BERGAMO, Mônica. Ex-candidata do PSL diz ser ameaçada por assessores do futuro ministro do Turismo. Folha de S.Paulo, 19 de dezembro de 2018. Disponível em: < https://www1.folha.uol.com.br/colunas/monicabergamo/2018/12/ex-candidata-do-psl-diz-ser-ameacada-por-assessores-do-futuro-ministro-do-turismo.shtml>. Acesso em: 13 maio 2020.

BRAGON, Ranier; MATTOSO, Camila. Ministro de Bolsonaro criou candidatos laranjas para desviar recursos na eleição. Folha de S.Paulo, 4 de fevereiro de 2019. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/02/ministro-de-bolsonaro-criou-candidatos-laranjas-para-desviar-recursos-na-eleicao.shtml>. Acesso em: 13 maio 2020.

COELHO, Gabriela. Uso de candidaturas laranja leva à cassação da chapa, decide TSE. Conjur, 18 de setembro de 2019. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2019-set-18/uso-candidaturas-laranja-leva-cassacao-chapa-decide-tse>. Acesso em: 13 maio 2020.

FLORENTINO, Karoline. Representatividade das mulheres na política. Politize!, 18 de outubro de 2018. Disponível em: < https://www.politize.com.br/mulheres-na-politica/>. Acesso em: 8 maio 2020.

FROTA, Cristiane de Medeiros Brito Chaves. Representatividade eleitoral da mulher no Brasil. Justiça e Cidadania, 8 de março de 2016. Disponível em: <https://www.editorajc.com.br/representatividade-eleitoral-da-mulher-no-brasil/>. Acesso em: 9 maio 2020.

GARCIA, Janaína. Projeto do MP paulista defende 50% de vagas na política para mulheres. UOL, 20 de setembro de 2019. Disponível em: < https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2019/09/20/projeto-do-mp-paulista-defende-50-de-vagas-na-politica-para-mulheres.htm>. Acesso em: 13 maio 2020.

HAJE, Lara. Baixa representatividade de brasileiras na política se reflete na Câmara. Câmara dos Deputados, 29 de março de 2019. Diponível em: <https://www.camara.leg.br/noticias/554554-baixa-representatividade-de-brasileiras-na-politica-se-reflete-na-camara/>. Acesso em: 9 maio 2020.

MB/CR. STF garante mínimo de 30% do fundo partidário destinados a campanhas para candidaturas de mulheres. Supremo Tribunal Federal, 15 de março de 2018. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=372485>. Acesso em: 10 maio 2020.

MELO, Hildete Pereira de. A política de cotas para as mulheres no Brasil: importância e desafios para avançar ! Gênero e Número, 13 de setembro de 2018. Disponível em: <http://www.generonumero.media/a-politica-de-cotas-para-as-mulheres-no-brasil-importancia-e-desafios-para-avancar/>. Acesso em: 9 maio 2020.

PASSARINHO, Nathalia. Candidatas laranjas: pesquisa inédita mostra que partidos usaram mais mulheres para burlar cotas em 2018. UOL, 8 de março de 2019. Disponível em: < https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/bbc/2019/03/08/candidatas-laranjas-partidos-usaram-mulheres-para-burlar-cotas.htm>. Acesso em: 12 maio 2020.

RC, LC/LR, DM. Fundo Eleitoral e tempo de rádio e TV devem reservar o mínimo de 30% para candidaturas femininas, afirma TSE. Tribunal Superior Eleitoral, 22 de maio de 2018. Disponível em: <http://www.tse.jus.br/imprensa/noticias-tse/2018/Maio/fundo-eleitoral-e-tempo-de-radio-e-tv-devem-reservar-o-minimo-de-30-para-candidaturas-femininas-afirma-tse>. Acesso em: 12 maio 2020.

RP/CR. STF decide que campanhas de candidatas terão mais recursos na eleição deste ano. Supremo Tribunal Federal, 3 de outubro de 2018. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=391666&tip=UN>. Acesso em: 10 maio 2020.

VELASCO, Clara. Apenas um estado do país será comandado por uma mulher. G1, 28 de outubro de 2018. Disponível em: <https://g1.globo.com/politica/eleicoes/2018/eleicao-em-numeros/noticia/2018/10/28/apenas-um-estado-do-pais-sera-comandado-por-uma-mulher.ghtml>. Acesso em: 9 maio 2020.



[1] BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Recurso Especial eleitoral nº 78.432, Belém/PA, rel. Min. Arnaldo Versiani Leite Soares, Brasília, DF, 12 de agosto de 2010. Publicado em Sessão, 12 ago. 2010. Disponível em: <www.tse.jus.br>. Acesso em: 11 maio 2020.
[2] BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Recurso Especial Eleitoral nº 21.498, Humaitá/RS, rel. Min. Henrique Neves da Silva, 23 de maio de 2013. Diário de Justiça Eletrônico, tomo 117, 24 jun. 2013, p. 56. Disponível em: <www.tse.jus.br>. Acesso em: 11 maio 2020.
[3] BRASIL. Recurso Especial Eleitoral nº 149, José de Freitas/PI, rel. Min. Henrique Neves da Silva, 4 de agosto de 2015. Diário de Justiça Eletrônico, 21 out. 2015, p. 25-26. Disponível em: <www.tse.jus.br>. Acesso em: 11 maio 2020.

quinta-feira, 7 de maio de 2020

Brasil envia à OEA manifestação defendendo legalidade da Lei da Ficha Limpa


Leia notícia publicada no site Conjur em 04.05.20:

A Missão Permanente do Brasil na Organização dos Estados Americanos (OEA) se manifestou, em 2 de janeiro, a respeito da legalidade da Lei da Ficha Limpa (Lei Complementar 135), questionada em 2015 pelo ex-prefeito de uma cidade de Santa Catarina, Odilson Vicente de Lima. 
O político recorreu à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) depois que foi condenado pelo Tribunal de Justiça de Santa Catarina por desvio de bens da prefeitura. A decisão, de 2004, tornou-o inelegível. Assim, mesmo tendo sido o candidato mais bem votado na eleição de 2012, teve sua posse barrada. 
À época, os advogados Ruy Samuel Espíndola e Marcelo Ramos Peregrino argumentaram que havia recursos pendentes contra a decisão do TJ-SC. Por isso, o prazo da inelegibilidade dependeu da demora do andamento penal e não do crime em si imputado. 
Em sua manifestação, no entanto, a missão brasileira afirma que, embora pendente de trânsito em julgado, a Lei da Ficha Limpa prevê a hipótese de inelegibilidade em caso de decisão condenatória por órgão judicial colegiado. Desta forma, a condenação por parte do TJ-SC já é suficiente para tornar o político inelegível. 
O documento também diz que a própria Constituição brasileira prevê condições de elegibilidade em seu artigo 14, parágrafo 3º, e que o Supremo Tribunal Federal referendou a validade da Lei da Ficha Limpa.
Convenção

O político foi à OEA por considerar que a anulação dos votos viola o artigo 9º da Convenção Americana, que impede uma pena mais grave do que a aplicável no momento do delito. 
"Sua condenação criminal deu-se em 14 de dezembro de 2004, enquanto a Lei Complementar 135 somente foi promulgada e publicada em 4 de junho de 2010, cinco anos e seis meses depois da condenação e quase 15 anos depois dos fatos imputados", afirmam os advogados de Vicente.
A manifestação brasileira, por outro lado, argumenta que o impedimento "baseou-se em critérios legais e legítimos, em consonância com a defesa dos interesses da sociedade em ter como participante do pleito eleitoral candidatos que realmente preencham os requisitos normativos". 
Ainda segundo a missão permanente, "a simples irresignação da vítima quanto às conclusões alcançadas pelo estado em um inquérito policial ou processo judicial não pode, legitimamente, ensejar a submissão do caso ao Sistema Interamericano, sob pena de a CIDH substituir as autoridades nacionais e atuar como espécie de 'órgão de apelação de 4ª instância'". 

sexta-feira, 1 de maio de 2020

Brasil: A evolução recente do regime jurídico do teto dos gastos de campanha

A primeira missão que incumbe ao regime jurídico do financiamento eleitoral, em todas as democracias, é fixar um limite máximo para os gastos de campanha. Isso porque a ausência de um limite assim atenta contra o princípio da igualdade de oportunidades entre todos os candidatos.
No entanto, o que se verificava, no que diz respeito ao conjunto das regras que se aplicava ao financiamento eleitoral, tal como estava posto no texto original da Lei das Eleições (Lei nº 9.504/1997), é que ao invés de coibir, ele favorecia sobremaneira a influência do poder econômico nas eleições.
 Assim, não surpreende que a disciplina do teto de gastos, no texto original dessa lei, fosse de fato das mais insatisfatórias. Não havia um limite fixo, igual para todos os candidatos ao mesmo cargo, na mesma circunscrição. O que havia era a previsão de que os partidos deviam, juntamente com o pedido de registro de seus candidatos, comunicar à Justiça Eleitoral os valores máximos de gastos que fariam por cada tipo de candidatura, em cada eleição em que concorressem.
Esse sistema, por demais iníquo, perdurou intocado até 2006. No ano anterior, 2005, eclodiu o escândalo do “Mensalão”, que pôs em relevo algumas das falhas do regime jurídico do financiamento eleitoral. Por exemplo, o insuficiente sancionamento do caixa dois. A forte reação da opinião pública mobilizou o Congresso Nacional a editar a minirreforma eleitoral de 2006 (Lei nº 11.300), introduzindo mudanças com vistas sobretudo a tornar mais efetivas as regras então vigentes.
No que concerne ao teto dos gastos, ficou estabelecido, na ocasião, que em todo ano eleitoral um limite de gastos de campanha deveria ser fixado por lei para os cargos em disputa.
Entretanto, o paradoxo que marca o direito eleitoral – ser feito pelos políticos para disciplinar a forma como eles próprios chegam ao poder – se fez sentir então fortemente. Como não interessava aos partidos perder a liberdade para fixar seu próprio limite de gastos em cada eleição, como ocorreria se houvesse um limite fixo igual para todos previsto em lei, essa mudança foi enfraquecida. Assim, ficou estabelecido que caso a lei não fosse editada até a data prevista, tudo ficaria como antes – caberia a cada partido fixar o limite de gastos e comunicá-lo à Justiça Eleitoral.
 Desse modo, para as eleições de 2008, de 2010, de 2012 e de 2014, o Congresso Nacional deixou de editar a referida lei, tendo sido mantida nesses anos eleitorais a regra da fixação do próprio limite de gastos por cada partido político.
Esse sistema favorecia a corrupção, além de ser iníquo – porque os partidos tinham acesso desigual às fontes privadas de financiamento, na época oriundo sobretudo de doações de empresas. Nada impedia que os que recebiam doações maiores fixassem tetos de gastos mais altos para si.
Dois fatores contribuíram para uma certa mudança de mentalidade nessa matéria. Um foi a propositura, pela OAB, da ADI que questionou a constitucionalidade da permissão legal para doações de pessoas jurídicas para partidos e candidatos. A ação foi proposta a pedido do MCCE, que atuou como Amicus Curiae. Ela  culminou com o banimento, em decisão proferida pelo STF em 2015, dessa modalidade de financiamento eleitoral.
Outro foi a eclosão do escândalo do “Petrolão”, objeto da Operação Lava Jato da Polícia Federal, que teve início em 2014. Como se sabe, esse escândalo revelou que doações de empresas para campanhas eleitorais, ainda que declaradas à Justiça Eleitoral, vulgo caixa um, podiam constituir na verdade contrapartida de favorecimentos em licitações públicas.
Tudo isso contribuiu para uma certa tomada de consciência, por parte da sociedade brasileira, do fato de que o próprio regime jurídico do financiamento eleitoral, tal como previsto em lei, tendia no sentido de favorecer a influência do poder econômico nas eleições.
Pressionado, em 2015 o Congresso Nacional mudou a disciplina do teto dos gastos, dando nova redação ao art. 18 da Lei das Eleições. Essa minirreforma (Lei nº 13.165/2015) estabeleceu parâmetros gerais para fixação do teto. Esses parâmetros consistiam em porcentagens do maior gasto informado na eleição anterior. Pela primeira vez, tínhamos limites iguais para todos os candidatos ao mesmo cargo, na mesma circunscrição. E essa minirreforma conferiu à Justiça Eleitoral a atribuição de fazer os cálculos, com base nessas regras, e dar publicidade aos números.
Porém, fixar os limites com base nas prestações de contas da eleição anterior talvez não tenha sido a medida mais acertada. Como é sabido, nas prestações de contas alguns candidatos declaram o movimento real da campanha e outros omitem gastos. Por essa razão, foram observadas na campanha de 2016 acentuadas discrepâncias, de um município para o outro, entre o número de eleitores e o teto de gastos. Assim, municípios com número maior de eleitores tiveram teto de gastos fixado em valor inferior ao de municípios com eleitorado menor.
Quanto à sanção, como sói acontecer, quando a regra é mais estrita, de mais difícil observância, ela costuma ser mais branda, e é o que se verifica no presente caso: antes, em caso de extrapolação do teto, aplicava-se multa no valor de 5 a 10 vezes a quantia em excesso. Desde a reforma de 2015, ano em que o financiamento por empresas foi banido, a sanção passou a ser o pagamento de multa em valor equivalente a 100% da quantia que ultrapassar o limite estabelecido (ou seja, uma vez a quantia em excesso, e não mais de 5 a 10 vezes) (art. 18-B da Lei das Eleições, incluído pela Lei nº 13.165/2015).
Ao que parece, a campanha eleitoral de 2016 se ressentiu da escassez de recursos, em razão do banimento das doações de pessoas jurídicas, que eram responsáveis por grande parte do financiamento eleitoral.
Por essa razão, em 2017, a disciplina do financiamento eleitoral foi modificada novamente. O Congresso Nacional criou o Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC), ampliando o financiamento público das campanhas (Lei nº 13.487/2017).
Na ocasião, o tratamento do teto dos gastos eleitorais foi também alterado. Por força da redação dada pela Lei nº 13.488/2017 ao caput do art. 18 da Lei das Eleições, os parâmetros fixados em 2015 foram revogados. Ficou estabelecido que “os limites de gastos de campanha serão definidos em lei e divulgados pelo Tribunal Superior Eleitoral”.
Essa mesma lei de 2017 estabeleceu os limites aplicáveis às eleições gerais de 2018. O teto de gastos para a campanha para o cargo de presidente da República foi fixado em 70 milhões de reais, com acréscimo de 35 milhões para o segundo turno.
Para se ter uma ideia, na eleição presidencial de 2014, ainda no sistema anterior, do limite auto declarado e com financiamento por pessoas jurídicas, a campanha de Dilma Rousseff informou à Justiça Eleitoral gastos de mais de 350 milhões de reais, e a de Aécio Neves, de mais de 223 milhões de reais.
Uma vez implantado o FEFC, em 2018 o MDB foi a sigla que recebeu a maior fatia, um montante aproximado de 230 milhões de reais, de um total de 1,7 bilhão de reais, distribuído entre 35 partidos.
Exceção feita ao dever de destinar no mínimo 30% para campanhas de candidatas mulheres, objeto de Consulta respondida pelo TSE, não há regras disciplinando a distribuição do FEFC entre os candidatos de um mesmo partido. Sendo assim, no regime de financiamento majoritariamente público, o teto de gastos mantém sua importância, por ser o único limite legal que impede que um dado partido concentre grande parte dos recursos do FEFC por ele recebidos em apenas uma ou em poucas candidaturas.
Como é óbvio, essa minireforma de 2017 instalou o risco de que em anos eleitorais vindouros os gastos de campanha fiquem ilimitados, caso o Congresso deixe de editar a referida lei, como ocorreu tantas vezes no passado.
Para atenuar essa incerteza, pelo menos quanto às eleições municipais, em 2019 foi editada a Lei nº 13.878, que incluiu o art. 18-C na Lei das Eleições. Esse artigo fixou o teto de gastos nas eleições municipais de forma geral. Supostamente, aplica-se a todas as eleições municipais vindouras, e não apenas às eleições municipais de 2020: “O limite de gastos nas campanhas dos candidatos às eleições para prefeito e vereador, na respectiva circunscrição, será equivalente ao limite para os respectivos cargos nas eleições de 2016, atualizado pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), aferido pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), ou por índice que o substituir. Parágrafo único. Nas campanhas para segundo turno das eleições para prefeito, onde houver, o limite de gastos de cada candidato será de 40% (quarenta por cento) do limite previsto no caput deste artigo.”
Como dito, o teto de gastos fixado para a campanha de 2016 esteve na origem de acentuadas discrepâncias, razão pela qual não parece sensata essa repetição na eleição de 2020.
A esta altura, em razão da pandemia, ainda não é possível saber se as eleições municipais de 2020 se realizarão de fato este ano, ou se serão adiadas. Além disso, discute-se se o FEFC de 2 bilhões de reais deverá ou não ser destinado ao combate ao coronavirus. Há óbices jurídicos, mas é o que pretendem ações em juízo e projetos de lei.
Quanto às eleições gerais, os limites seguem indefinidos.
Seja como for, é de notar que deve observar o teto de gastos a soma de (quase) todas as despesas realizadas pelo candidato durante a campanha, bem como de (quase) todas as despesas realizadas pelo partido que tenham sido feitas em favor da campanha do candidato em questão. Não importa se a fonte dos recursos despendidos é pública (Fundo Partidário e FEFC) ou privada (doações de pessoas físicas e autofinanciamento).
Por que dissemos quase ? É que a reforma de 2019 (Lei nº 13.877) introduziu uma exceção: os gastos com honorários de advogados e contadores, relacionados à prestação de serviços em campanhas eleitorais, bem como para defesa em juízo de interesses de candidatos e partidos, doravante não precisam mais ser contabilizados para os fins da observância do teto.
Com ou sem razão, os políticos provavelmente consideraram que os elevados gastos com honorários de advogados e contadores, embora necessários, restringiriam os gastos com propaganda eleitoral, que é a principal prioridade das campanhas, se fossem mantidos no conjunto de gastos que, somados, estão submetidos ao teto.
Mas, como não há um teto específico para esses gastos com honorários de advogados e contadores, houve quem estimasse que essa regra constitui uma brecha para contornar os limites fixos – até o momento estabelecidos ao menos para as campanhas municipais.
Por esse e por outros motivos, a fiscalização é importante.
Esse sempre foi um grande desafio para a Justiça Eleitoral, que sempre tendeu a fazer um exame perfunctório das prestações de contas de candidatos e partidos. Se as contas estivessem formalmente bem prestadas, tendiam a ser aprovadas, embora não refletissem, nem de longe, a realidade das campanhas.
A fiscalização, pela Justiça Eleitoral, da realidade da arrecadação e dos gastos de campanha, durante todo processo eleitoral, não se limitando simplesmente à análise das prestações de contas, está prevista pelo menos desde 2014.
Desde então, as resoluções do TSE que disciplinam a arrecadação e os gastos de campanha contêm a previsão de que, durante todo o processso eleitoral, a Justiça Eleitoral pode fiscalizar a arrecadação e aplicação de recursos, visando subsidiar a análise das prestações de contas.
O passo mais importante foi dado a partir da minirreforma de 2015, que estabeleceu o dever de divulgação, durante a campanha, dos recursos recebidos, que devem ser publicados na internet em até 72 horas do seu recebimento ; e de de todos os recursos recebidos e todas as despesas realizadas em prestação de contas parcial, no dia 15 de setembro (Lei das Eleições, art. 28, § 4º).
Nas eleições de 2016, a Justiça Eleitoral criou um Núcleo de Inteligência, formado por representantes do TSE, dos TREs, do Ministério Público Federal, da Polícia Federal, do Tribunal de Contas da União, da Receita Federal e do Coaf.
Nas eleições de 2018, o capítulo sobre fiscalização contido na resolução sobre arrecadação e gastos de campanha foi intitulado “Controle e Fiscalização Concomitante”, e trouxe normas detalhadas sobre a fiscalização pela Justiça Eleitoral, o encaminhamento ao MP dos indícios de irregularidade, indícios esses obtidos mediante cruzamento de informações, a apuração pelo MP e a comunicação à autoridade judiciária.
A matéria teve o mesmo tratamento na Resolução TSE nº 23.607/2019, que disciplinou a arrecadação e os gastos de campanha nas eleições de 2020 (art. 89).
 Em suma, o Brasil partiu de um sistema insatisfatório, de limites auto declarados. O sistema aos poucos evoluiu, e nas campanhas eleitorais de 2016 e de 2018 houve tetos fixos e iguais para todos, previstos em lei e estabelecidos em patamares menores do que se praticava anteriormente. Uma vez implantado o financiamento majoritariamente público, o teto de gastos segue relevante. O Brasil tem no presente momento um limite para campanhas municipais, mas nas eleições gerais os limites estão indefinidos. O limite para campanhas municipais baseia-se em critério que dá ensejo a discrepâncias. Uma brecha permite que parte dos gastos não se submeta ao teto. É importante agora que uma lei estabeleça limites para as eleições gerais. A fiscalização, ponto tradicionalmente fraco do sistema, evoluiu com a divulgação da movimentação financeira das campanhas antes da eleição. Cumpre à Justiça Eleitoral exercer um controle concomitante e eficaz.

REFERÊNCIAS:

BORGES, Iara Farias. Senadores querem destinar recursos do Fundo Eleitoral ao combate à covid-19. Senado Notícias, 2 de abril de 2020. Disponível em : <https://www12.senado.leg.br/noticias/audios/2020/04/senadores-querem-destinar-recursos-do-fundo-eleitoral-ao-combate-a-covid-19>. Acesso em: 6 maio 2020.

EM, BB/JP. TSE aprova com ressalvas contas de Dilma e de Comitê Financeiro para presidente da República. Tribunal Superior Eleitoral, 10 de dezembro de 2014. Disponível em : <http://www.tse.jus.br/imprensa/noticias-tse/2014/Dezembro/tse-aprova-com-ressalvas-contas-de-dilma-e-de-comite-financeiro-para-presidente-da-republica>. Acesso em: 5 maio 2020.

FP/TC. Eleições 2016: Justiça Eleitoral institui Núcleo de Inteligência para atuar na fiscalização das contas de camapnha. Tribunal Superior Eleitoral, 12 de agosto de 2016. Disponível em: <http://www.tse.jus.br/imprensa/noticias-tse/2016/Agosto/eleicoes-2016-justica-eleitoral-institui-nucleo-de-inteligencia-para-atuar-na-fiscalizacao-das-contas-de-campanha>. Acesso em: 6 maio 2020.

MARTINS, Helena. Campanhas de Aécio e Dilma juntas gastaram mais de 570 milhões. Agência Brasil, 25 de novembro de 2014. Disponível em: <https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2014-11/campanhas-de-aecio-e-dilma-juntos-gastaram-mais-de-r-570-milhoes>. Acesso em: 5 maio 2020.

PEREIRA, Sandra. Embu terá campanha para prefeito e vereador mais cara que Taboão e Itapecerica. Jornal na Net, 21 de julho de 2016. Disponível em: <https://www.jornalnanet.com.br/noticias/14073/> . Acesso em: 5 maio 2020.

X. JF/DF bloqueia fundos eleitoral e partidário e autoriza uso para combate ao coronavirus. Migalhas, 7 de abril de 2020. Disponível em: <https://www.migalhas.com.br/quentes/324027/jf-df-bloqueia-fundos-eleitoral-e-partidario-e-autoriza-uso-para-combate-ao-coronavirus>. Acesso em: 6 maio 2020.

segunda-feira, 27 de abril de 2020

Brasil: Pandemia e eleições: o papel da Justiça Eleitoral, por Francisco Octavio de Almeida Prado Filho e Ricardo Penteado


Leia artigo publicado no informativo Migalhas em 20.04.2020:

Não bastassem as naturais dificuldades desse processo eleitoral, neste ano há que se lidar com as extraordinárias limitações impostas em razão do enfrentamento à pandemia da covid-19.

A Justiça Eleitoral tem a importante e permanente missão institucional de organizar e tomar as providências necessárias para a realização das eleições. No corrente ano, deverá realizar as eleições para prefeito, vice-prefeito e vereadores, que de acordo com o art. 29, I e II da CF, deverão ocorrer simultaneamente em todos os municípios do país, no próximo dia 4 de outubro.
Para que este evento nacional e simultâneo possa acontecer, um rígido calendário deve ser seguido, em atendimento a datas, processos e procedimentos previstos na CF, na lei eleitoral e em disposições regulamentares.
Estamos já tão acostumados que quase não nos damos conta de que essa organização das eleições e a condução do processo eleitoral não são tarefas fáceis, mas a Justiça Eleitoral brasileira sempre respondeu à altura, desempenhando com enorme sucesso suas importantíssimas funções institucionais.
Para se ter uma ideia, ainda que vaga, da complexidade envolvida na organização do processo eleitoral, assim como de sua dimensão, sugere-se uma rápida consulta ao calendário eleitoral e também à resolução TSE 23.611/19, que trata dos atos gerais do processo eleitoral para as eleições 2020, disciplinando em detalhes algumas das providências a serem tomadas.
Não bastassem as naturais dificuldades desse processo eleitoral, neste ano há que se lidar com as extraordinárias limitações impostas em razão do enfrentamento à pandemia da covid-19, de acordo com as diretrizes estabelecidas pela OMS, além das orientações e determinações adotadas e impostas pelos diversos entes federativos.
Malgrado esse cenário, cabe ressaltar que a organização do processo eleitoral configura, em sua maior parte, exercício de função administrativa - e não jurisdicional - afetada a esse órgão do Poder Judiciário, a demonstrar uma peculiaridade dessa justiça especializada.
Não se nega que os demais órgãos do Poder Judiciário também exercem função administrativa, como, aliás, também faz o Poder Legislativo em suas diversas esferas federativas. Mas o destaque que se dá neste artigo não é o da administração decorrente da autonomia de gestão dada aos Poderes, limitada, no mais das vezes, a questões internas, ligadas ao regime de pessoal, licitações, compras e outras atividades de apoio, necessárias ao bom desempenho das funções típicas (jurisdicional ou legislativa, conforme o caso).
No caso da Justiça Eleitoral, como já mencionado, o exercício da função administrativa relacionada ao Processo Eleitoral adquire dimensão que transcende a sua esfera peculiar, equiparando-se ou até mesmo superando, em importância, o exercício da função jurisdicional típica.
Essa função administrativa envolve a coordenação e execução de obrigações que vinculam todos os envolvidos no processo: eleitores, partidos, candidatos e administração pública.
É neste contexto que a Justiça Eleitoral exerce importante função regulamentar, inerente à função administrativa, expressa na prerrogativa de expedir as instruções que julgar convenientes à execução das leis eleitorais, mais precisamente do Código Eleitoral, Lei das Eleições e Lei dos Partidos Políticos, dentre outros diplomas.
Por tratar-se de poder regulamentar, conferido por lei, não pode contrariar a legislação em vigor. Ainda que fosse a intenção do legislador, a lei não poderia delegar ao TSE o poder de produzir normas de mesma hierarquia que ela própria, a lei. É o que o ilustre constitucionalista J. J. Gomes Canotilho1 chama de “princípio básico sobre a produção de normas jurídicas”, conceituando da seguinte maneira:
E esse princípio pode formular-se da seguinte forma: nenhuma fonte pode criar outras fontes com eficácia igual ou superior à dela própria. Apenas pode criar fontes de eficácia inferior. Este princípio básico desdobra-se em várias proposições: (1) nenhuma fonte pode atribuir a outra um valor de que ela própria não dispõe; (2) nenhuma fonte pode atribuir a outra um valor idêntico ao seu; (3) nenhuma fonte pode dispor do seu próprio valor jurídico acrescentando-o ou diminuindo-o; (4) nenhuma fonte pode transformar para actos de outra natureza o seu próprio valor jurídico.
Assim, o fato de as resoluções possuírem força normativa e caráter cogente não implica a possibilidade jurídica de se sobreporem à lei ou a ela se equipararem em todos os seus efeitos.
Em algumas ocasiões o exercício da competência regulamentar pelo TSE foi bastante criticado, sob alegação de que teria extrapolado os limites estabelecidos pela ordem jurídica. Foi assim, por exemplo, quando da redução do número de vereadores nas Câmaras Municipais; na imposição da chamada verticalização das coligações e no estabelecimento de hipótese não prevista na constituição de perda de mandatos representativos por migração partidária de eleitos. Em muitas dessas ocasiões, o poder regulamentar foi utilizado para dar força vinculante a entendimento firmado em caso concreto, em controle difuso de constitucionalidade.
A despeito das eventuais críticas – cujo mérito ou procedência não se pretende aqui discutir – o exercício desse poder regulamentar tem sido, no mais das vezes, fundamental para organizar o processo eleitoral e garantir a necessária segurança jurídica para o seu bom andamento.
Essa importante ferramenta regulamentar, no momento atual da pandemia, ganha ainda maior relevância.
Tanto quanto outras atuações administrativas se vêm na contingência de se adequar às atuais circunstâncias, no sempre presente objetivo de realizar seus propósitos finais, a Justiça Eleitoral também deve alinhar-se aos fatos e disciplinar a atuação de todos os agentes na conformidade das circunstâncias que se impõem.
Da mesma forma que acontece com os gestores públicos em todos os níveis da Federação, cabe à Justiça Eleitoral adotar as medidas necessárias para garantir, com o menor prejuízo possível, o bom desempenho de suas funções institucionais, em especial a realização das eleições.
Mesmo considerados os limites constitucional e legal, há muito o que se fazer, muitas adaptações e mudanças se impõem, especialmente no aspecto formal de determinados atos, de modo a garantir que possam ser realizados à distância, com o menor prejuízo possível ao bom andamento do processo eleitoral.
E a Justiça Eleitoral tem respondido à altura, já tendo feito as adaptações necessárias para o cumprimento dos prazos já transcorridos, como a filiação partidária e mudança do domicílio eleitoral.
É fato que o Brasil é uma país de dimensões continentais e grande desigualdade social, inclusive entre os diversos estados e regiões, o que apenas dificulta, ainda mais, a tomada de soluções.
Mas também é fato que a Justiça Eleitoral brasileira já enfrentou, com louvável êxito, outros enormes desafios, como a implantação da urna eletrônica em todo o território nacional, fato que serve de exemplo e é objeto de estudo em diversas democracias do mundo.
Nos termos da CF, o objetivo maior é garantir a realização das eleições, com a maior normalidade possível, preservando-se inalterada a duração dos mandatos, outorgados pela vontade popular.
Trabalha-se, hoje, com a manutenção do calendário eleitoral, tendo como pressuposto que as eleições serão realizadas no primeiro domingo de outubro, como determina a Constituição.
Por se tratar de uma situação nova, entretanto, ninguém é capaz de prever, com um mínimo de segurança, qual será a situação fática às vésperas das eleições, quais as limitações práticas e intransponíveis que serão impostas pelas estratégias de controle da pandemia.
Neste cenário, é prematura qualquer discussão a respeito do adiamento das eleições e todos os esforços devem ser concentrados na manutenção do calendário original, como, aliás, já vem sendo feito.
Se acaso nos depararmos com algum óbice intransponível no cumprimento desse calendário, em razão de circunstâncias fáticas insuperáveis, a impossibilidade de realização das eleições na data constitucional não pode servir de causa para a sua não realização de modo que nesta hipótese, poderá a Justiça Eleitoral adiar a data de realização da eleição em municípios em que não seja possível realizá-la, além de poder fazer as adaptações necessárias para evitar aglomerações, como, entre outras medidas, estender e organizar os horários de votação.
Claro que a solução para esse problema também poderá partir do Legislativo que, se houver tempo hábil, poderá propor alterações legislativas pontuais, preservando-se ao máximo o calendário eleitoral.
Mas pode ocorrer, entretanto, que essas dificuldades surjam às vésperas das eleições ou em momento em que não mais seja possível a atuação legislativa. Nesta última hipótese, seria legítimo que a Justiça Eleitoral tomasse as providências no sentido do adiamento?
Entendemos que, assim como todo e qualquer gestor público, frente a uma situação fática em que o cumprimento da norma seja inviável, sob pena de prejuízo à vida e à saúde pública, deverá a Justiça Eleitoral fazer as adaptações necessárias para garantir o cumprimento de sua missão institucional, a realização das eleições com a garantia da alternância e periodicidade dos mandatos.
Trata-se de solução juridicamente sustentável ante circunstâncias excepcionais e atípicas, como a que estamos vivendo atualmente.
Mas é oportuno aqui uma proposta: ainda que em nosso entendimento, a Justiça Eleitoral possa decidir na undécima hora pela realização ou adiamento das eleições, nada impede que o Legislativo, a guisa de apaziguar eventuais desconfortos de ordem política e dar prestígio ao princípio da tripartição e harmonia entre Poderes, aprove emenda constitucional, em disposição transitória, conferindo à Justiça Eleitoral competência para alterar a data das eleições no corrente ano, assim como os demais procedimentos preparatórios, pelo tempo e condições mínimas necessárias, de forma excepcional, para este pleito específico.
Vale lembrar, neste ponto, que o art. 5º, §2º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias previa:
Art. 5º...
(...)
§ 2º Na ausência de norma legal específica, caberá ao Tribunal Superior Eleitoral editar as normas necessárias à realização das eleições de 1988, respeitada a legislação vigente.
Na ausência de norma legal específica, conferia-se ao TSE a competência para editar as normas necessárias para as eleições de 1988. O Congresso, no entanto, atuou prontamente para suprir essa lacuna, aprovando a lei 7.664/88, de 29 de junho de 1988, válida para as eleições daquele ano.
O que agora se propõe é solução bastante mais contida e limitada que aquela prevista no ADCT: propõe-se uma emenda constitucional que conceda à Justiça Eleitoral a prerrogativa de alterar a data da eleição e a forma de procedimentos preparatórios, pelo tempo mínimo necessário a tornar possível sua realização. A medida, além de preservar a institucionalidade e a competência dos órgãos e Poderes envolvidos, daria maior segurança jurídica à tomada de decisões.
_________
1 Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 3ª edição, p. 651

_________

*Francisco Octavio de Almeida Prado Filho é sócio-fundador de Almeida Prado Advogados e presidente da Comissão de Estudos sobre Improbidade Administrativa do IASP. 

*Ricardo Penteado é advogado, especialista em direitos políticos e eleitoral, sócio do escritório Malheiros, Penteado, Toledo – Advogados.