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publicado no informativo Migalhas em 20.04.2020:
Não
bastassem as naturais dificuldades desse processo eleitoral, neste ano há que
se lidar com as extraordinárias limitações impostas em razão do enfrentamento à
pandemia da covid-19.
A Justiça Eleitoral tem a importante e
permanente missão institucional de organizar e tomar as providências
necessárias para a realização das eleições. No corrente ano, deverá realizar as
eleições para prefeito, vice-prefeito e vereadores, que de acordo com o art.
29, I e II da CF, deverão ocorrer simultaneamente em todos os municípios do país,
no próximo dia 4 de outubro.
Para que este evento nacional e
simultâneo possa acontecer, um rígido calendário deve ser seguido, em
atendimento a datas, processos e procedimentos previstos na CF, na lei
eleitoral e em disposições regulamentares.
Estamos já tão acostumados que quase
não nos damos conta de que essa organização das eleições e a condução do
processo eleitoral não são tarefas fáceis, mas a Justiça Eleitoral brasileira
sempre respondeu à altura, desempenhando com enorme sucesso suas
importantíssimas funções institucionais.
Para se ter uma ideia, ainda que vaga,
da complexidade envolvida na organização do processo eleitoral, assim como de
sua dimensão, sugere-se uma rápida consulta ao calendário eleitoral e também à
resolução TSE 23.611/19, que trata dos atos gerais do processo eleitoral para as eleições
2020, disciplinando em detalhes algumas das providências a serem tomadas.
Não bastassem as naturais dificuldades
desse processo eleitoral, neste ano há que se lidar com as extraordinárias
limitações impostas em razão do enfrentamento à pandemia da covid-19, de acordo
com as diretrizes estabelecidas pela OMS, além das orientações e determinações
adotadas e impostas pelos diversos entes federativos.
Malgrado esse cenário, cabe ressaltar
que a organização do processo eleitoral configura, em sua maior parte,
exercício de função administrativa - e não jurisdicional - afetada a esse órgão
do Poder Judiciário, a demonstrar uma peculiaridade dessa justiça
especializada.
Não se nega que os demais órgãos do
Poder Judiciário também exercem função administrativa, como, aliás, também faz
o Poder Legislativo em suas diversas esferas federativas. Mas o destaque que se
dá neste artigo não é o da administração decorrente da autonomia de gestão dada
aos Poderes, limitada, no mais das vezes, a questões internas, ligadas ao
regime de pessoal, licitações, compras e outras atividades de apoio,
necessárias ao bom desempenho das funções típicas (jurisdicional ou
legislativa, conforme o caso).
No caso da Justiça Eleitoral, como já
mencionado, o exercício da função administrativa relacionada ao Processo
Eleitoral adquire dimensão que transcende a sua esfera peculiar, equiparando-se
ou até mesmo superando, em importância, o exercício da função jurisdicional típica.
Essa função administrativa envolve a
coordenação e execução de obrigações que vinculam todos os envolvidos no
processo: eleitores, partidos, candidatos e administração pública.
É neste contexto que a Justiça
Eleitoral exerce importante função regulamentar, inerente à função
administrativa, expressa na prerrogativa de expedir as instruções que julgar
convenientes à execução das leis eleitorais, mais precisamente do Código
Eleitoral, Lei das Eleições e Lei dos Partidos Políticos, dentre outros
diplomas.
Por tratar-se de poder regulamentar,
conferido por lei, não pode contrariar a legislação em vigor. Ainda que fosse a
intenção do legislador, a lei não poderia delegar ao TSE o poder de produzir
normas de mesma hierarquia que ela própria, a lei. É o que o ilustre
constitucionalista J. J. Gomes Canotilho1 chama de “princípio
básico sobre a produção de normas jurídicas”, conceituando da seguinte maneira:
E esse princípio pode
formular-se da seguinte forma: nenhuma fonte pode criar outras fontes com
eficácia igual ou superior à dela própria. Apenas pode criar fontes de eficácia
inferior. Este princípio básico desdobra-se em várias proposições: (1) nenhuma
fonte pode atribuir a outra um valor de que ela própria não dispõe; (2) nenhuma
fonte pode atribuir a outra um valor idêntico ao seu; (3) nenhuma fonte pode
dispor do seu próprio valor jurídico acrescentando-o ou diminuindo-o; (4)
nenhuma fonte pode transformar para actos de outra natureza o seu próprio valor
jurídico.
Assim, o fato de as resoluções
possuírem força normativa e caráter cogente não implica a possibilidade
jurídica de se sobreporem à lei ou a ela se equipararem em todos os seus
efeitos.
Em algumas ocasiões o exercício da
competência regulamentar pelo TSE foi bastante criticado, sob alegação de que
teria extrapolado os limites estabelecidos pela ordem jurídica. Foi assim, por
exemplo, quando da redução do número de vereadores nas Câmaras Municipais; na
imposição da chamada verticalização das coligações e no estabelecimento de
hipótese não prevista na constituição de perda de mandatos representativos por
migração partidária de eleitos. Em muitas dessas ocasiões, o poder regulamentar
foi utilizado para dar força vinculante a entendimento firmado em caso
concreto, em controle difuso de constitucionalidade.
A despeito das eventuais críticas –
cujo mérito ou procedência não se pretende aqui discutir – o exercício desse
poder regulamentar tem sido, no mais das vezes, fundamental para organizar o
processo eleitoral e garantir a necessária segurança jurídica para o seu bom
andamento.
Essa importante ferramenta
regulamentar, no momento atual da pandemia, ganha ainda maior relevância.
Tanto quanto outras atuações
administrativas se vêm na contingência de se adequar às atuais circunstâncias,
no sempre presente objetivo de realizar seus propósitos finais, a Justiça
Eleitoral também deve alinhar-se aos fatos e disciplinar a atuação de todos os
agentes na conformidade das circunstâncias que se impõem.
Da mesma forma que acontece com os
gestores públicos em todos os níveis da Federação, cabe à Justiça Eleitoral
adotar as medidas necessárias para garantir, com o menor prejuízo possível, o
bom desempenho de suas funções institucionais, em especial a realização das
eleições.
Mesmo considerados os limites
constitucional e legal, há muito o que se fazer, muitas adaptações e mudanças
se impõem, especialmente no aspecto formal de determinados atos, de modo a
garantir que possam ser realizados à distância, com o menor prejuízo possível
ao bom andamento do processo eleitoral.
E a Justiça Eleitoral tem respondido à
altura, já tendo feito as adaptações necessárias para o cumprimento dos prazos
já transcorridos, como a filiação partidária e mudança do domicílio eleitoral.
É fato que o Brasil é uma país de
dimensões continentais e grande desigualdade social, inclusive entre os
diversos estados e regiões, o que apenas dificulta, ainda mais, a tomada de
soluções.
Mas também é fato que a Justiça
Eleitoral brasileira já enfrentou, com louvável êxito, outros enormes desafios,
como a implantação da urna eletrônica em todo o território nacional, fato que
serve de exemplo e é objeto de estudo em diversas democracias do mundo.
Nos termos da CF, o objetivo maior é
garantir a realização das eleições, com a maior normalidade possível,
preservando-se inalterada a duração dos mandatos, outorgados pela vontade
popular.
Trabalha-se, hoje, com a manutenção do
calendário eleitoral, tendo como pressuposto que as eleições serão realizadas
no primeiro domingo de outubro, como determina a Constituição.
Por se tratar de uma situação nova,
entretanto, ninguém é capaz de prever, com um mínimo de segurança, qual será a
situação fática às vésperas das eleições, quais as limitações práticas e
intransponíveis que serão impostas pelas estratégias de controle da pandemia.
Neste cenário, é prematura qualquer
discussão a respeito do adiamento das eleições e todos os esforços devem ser
concentrados na manutenção do calendário original, como, aliás, já vem sendo
feito.
Se acaso nos depararmos com algum óbice
intransponível no cumprimento desse calendário, em razão de circunstâncias
fáticas insuperáveis, a impossibilidade de realização das eleições na data
constitucional não pode servir de causa para a sua não realização de modo que
nesta hipótese, poderá a Justiça Eleitoral adiar a data de realização da
eleição em municípios em que não seja possível realizá-la, além de poder fazer
as adaptações necessárias para evitar aglomerações, como, entre outras medidas,
estender e organizar os horários de votação.
Claro que a solução para esse problema
também poderá partir do Legislativo que, se houver tempo hábil, poderá propor
alterações legislativas pontuais, preservando-se ao máximo o calendário
eleitoral.
Mas pode ocorrer, entretanto, que essas
dificuldades surjam às vésperas das eleições ou em momento em que não mais seja
possível a atuação legislativa. Nesta última hipótese, seria legítimo que a
Justiça Eleitoral tomasse as providências no sentido do adiamento?
Entendemos que, assim como todo e
qualquer gestor público, frente a uma situação fática em que o cumprimento da
norma seja inviável, sob pena de prejuízo à vida e à saúde pública, deverá a
Justiça Eleitoral fazer as adaptações necessárias para garantir o cumprimento
de sua missão institucional, a realização das eleições com a garantia da
alternância e periodicidade dos mandatos.
Trata-se de solução juridicamente
sustentável ante circunstâncias excepcionais e atípicas, como a que estamos
vivendo atualmente.
Mas é oportuno aqui uma proposta: ainda
que em nosso entendimento, a Justiça Eleitoral possa decidir na undécima hora
pela realização ou adiamento das eleições, nada impede que o Legislativo, a
guisa de apaziguar eventuais desconfortos de ordem política e dar prestígio ao
princípio da tripartição e harmonia entre Poderes, aprove emenda
constitucional, em disposição transitória, conferindo à Justiça Eleitoral
competência para alterar a data das eleições no corrente ano, assim como os
demais procedimentos preparatórios, pelo tempo e condições mínimas necessárias,
de forma excepcional, para este pleito específico.
Vale lembrar, neste ponto, que o art.
5º, §2º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias previa:
Art. 5º...
(...)
§ 2º Na ausência de norma
legal específica, caberá ao Tribunal Superior Eleitoral editar as normas
necessárias à realização das eleições de 1988, respeitada a legislação vigente.
Na ausência de norma legal específica,
conferia-se ao TSE a competência para editar as normas necessárias para as
eleições de 1988. O Congresso, no entanto, atuou prontamente para suprir essa
lacuna, aprovando a lei 7.664/88, de 29 de junho de 1988, válida para as eleições daquele ano.
O que agora se propõe é solução
bastante mais contida e limitada que aquela prevista no ADCT: propõe-se uma
emenda constitucional que conceda à Justiça Eleitoral a prerrogativa de alterar
a data da eleição e a forma de procedimentos preparatórios, pelo tempo mínimo
necessário a tornar possível sua realização. A medida, além de preservar a
institucionalidade e a competência dos órgãos e Poderes envolvidos, daria maior
segurança jurídica à tomada de decisões.
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1 Direito Constitucional e Teoria
da Constituição, 3ª edição, p. 651
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*Francisco Octavio de Almeida Prado Filho é sócio-fundador de Almeida Prado Advogados e presidente da Comissão de
Estudos sobre Improbidade Administrativa do IASP.
*Ricardo Penteado é
advogado, especialista em direitos políticos e eleitoral, sócio do
escritório Malheiros,
Penteado, Toledo – Advogados.