Leia artigo publicado no blog de Fausto Macedo
(Estadão):
A história
coleciona incontáveis episódios que configuram tentativas de refrear as
atividades plenas do Ministério Público.
As tentativas que não se
mostraram diretas, como por exemplo a conhecida “Lei da Mordaça” e a PEC 37,
revelaram-se veladas e indiretas, como as malfadadas investidas contra a
autonomia funcional e administrativa da instituição, com rematados reflexos
orçamentários, buscando retirar-lhe a capacidade de gestão e reduzir-lhe as
condições para bem cumprir a sua vocação constitucional.
A PEC 37 como por todos sabido
buscava retirar o poder investigatório do Ministério Público, valendo ser
anotado que, acaso aprovada, talvez não estivéssemos assistindo ao que está
sendo proporcionado pela chamada “operação lava jato”.
Foi necessária grandiosa
mobilização nacional para que houvesse a sua rejeição, malogrando interesses
inconfessáveis que alimentavam a sua aprovação.
Àquela época, a população foi
cientificada, pelo correto e vital uso dos veículos de comunicação em massa, da
existência da PEC 37, que tramitava pelo Congresso Nacional. A imprensa,
exercendo papel de fundamental importância, encarregou-se de “publicizar” a sua
tramitação e a população, tendo sido suficientemente esclarecida a respeito dos
seus deletérios efeitos, acaso aprovada, resolveu corajosamente se manifestar,
protestando por sua rejeição, o que acabou acontecendo solenemente, no
parlamento nacional.
Ocorre que os debates prévios
que devem existir e estribar as mudanças legislativas nem sempre se situam no
campo da ampla reflexão e não raras vezes mostram-se pouco qualificados.
Ademais disso, nem sempre a sociedade é chamada a participar.
Com isso, surgem modificações
pontuais no sistema jurídico, atendendo a casuística e criando normas que se
encontram em desconformidade com a própria Constituição Federal, deixando de
encontrar nela o necessário fundamento para as suas validades.
No campo do Direito Eleitoral
não é diferente.
A Lei 9.504/97 (conhecida como
Lei Geral das Eleições) foi alterada diversas vezes, sendo que uma delas em
decorrência da Lei 12.034/09 e passou a contar, desde então, com o art. 105-A,
que proíbe a aplicação dos procedimentos previstos na Lei da Ação Civil Pública
em matéria eleitoral.
No entanto, desde logo, é
possível afirmar-se que a interpretação do art. 105-A da LE não pode conduzir
ao reconhecimento de ilicitude das provas obtidas pelo Ministério Público,
apenas e tão somente porque produzidas em procedimento preparatório ou
inquérito civil, instaurado e presidido pelo Promotor de Justiça.
A declaração de ilicitude das
provas somente porque obtidas em inquérito civil, sem que se verifique qualquer
desrespeito a direitos e garantias fundamentais, significa obstar a apreciação,
pela Justiça Eleitoral, das condutas em desacordo com a legislação e impedir o
Ministério Público de exercer o seu dever constitucional.
Mas, o surgimento do artigo
105-A da Lei 9.504/97 impõe reflexão e, às vésperas de eleições municipais, o
tema ganha importância.
Com esse objetivo, traçando-se
ligeiramente uma visão com perspectiva histórica no campo legislativo das
proposições que resultaram na Lei 12.034/2009, chega-se à inafastável conclusão
segundo a qual a matéria foi pouco amadurecida.
O atual 105-A não constava do
projeto original, mas adveio da Emenda de Plenário nº 57, da Câmara dos
Deputados, sendo que, na justificativa, o Deputado autor da Emenda
manifestou-se contra a “instalação de sindicância”, com “graves repercussões no
processo político eleitoral”, porque “só o fato de se instalar uma sindicância
contra um candidato já constitui providência, que atingi de uma forma muito
expressiva sua campanha eleitoral” (sic).
Pois bem.
É cediço que o inquérito civil
é procedimento administrativo, de natureza investigatória, que se traduz no
meio pelo qual o Ministério Público realiza as funções constitucionalmente a
ele cometidas, merecendo ser averbado que o inquérito civil não está previsto
apenas na Lei 7.347/85 (Lei da Ação Civil Pública), mas, também, na
Constituição Federal, na Lei Complementar 8.625/93, na Lei Complementar 75/93 e
na Lei Complementar Estadual 734/93 (LOMPSP). Assim, também a legitimação para
que o MP possa investigar assenta-se nesses diplomas legais.
Não se identifica nenhuma
razão plausível na existência de vedação a que o inquérito seja realizado. Há
vedação, isso sim, a que seja tido como substituto da instrução processual, sem
obediência ao contraditório e sem a observância dos primados constitucionais
que asseguram o pleno exercício do direito de defesa, entendido este em seu sentido
mais amplo.
Frisa-se que a preservação da
autonomia funcional do Ministério Público é garantia constitucional e o formato
de inquérito, isoladamente considerado, não pode resultar na conclusão de que a
prova, no procedimento preparatório amealhada, seja ilícita.
Fato é que a Lei Geral das
Eleições viu-se alterada e passou a contar com o art. 105-A, porque assim
entendeu o soberano congresso nacional.
Isso trouxe implicações, e se
exige ponderação.
O exame apenas literal do art.
105-A da LE leva ao distanciamento da necessária interpretação sistemática e
conforme com a Constituição Federal e aperfeiçoa iniludível desacerto.
A inexistência de procedimento
prévio à ação judicial eleitoral pode conduzir à propositura de ações
temerárias e destituídas de substratos mínimos necessários, merecendo destaque
que os arquivamentos das peças de informação, procedimentos preparatórios e
inquéritos civis, são recorrentes, quando verificada a ausência de elementos
aptos a ensejar demanda judicial.
Na moldura constitucional de
1988, está atribuída ao Ministério Público a incumbência de exercer a defesa da
ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais
indisponíveis, como preconizado pelo art. 127, caput.
Não se tem como negar que a
defesa da higidez do processo eleitoral e dos valores protegidos pelo
ordenamento jurídico eleitoral, como a normalidade, a legitimidade das
eleições, a paridade de oportunidades, a moralidade e a probidade, se inserem
no campo de atuação constitucionalmente conferida ao Ministério Público, na
medida em que geram efeitos experimentados por toda a coletividade.
Como dito, se interpretado
literalmente, o art. 105-A da LE fere gritantemente a Constituição Federal, em
especial porque a partir da CF/88, a legitimação do Ministério Público para
promover ao inquérito civil e a ação civil pública passou a constituir dever
constitucional da instituição.
Ao impedir a aplicação dos
procedimentos previstos na Lei da Ação Civil Pública, o legislador, no art.
105-A, da LE, buscou, certamente, afirmar que os legitimados para as ações
eleitorais deveriam ser apenas o MP, os Partidos, as Coligações e o candidato,
e não todos aqueles legitimados para a ação civil pública, como a Defensoria
Pública, a União, os Estados, o DF e os Municípios, as autarquias, empresas
públicas, fundações e sociedades de economia mista e associações.
A enorme ampliação em relação
aos legitimados para as ações eleitorais, representaria frontal colisão com o
previsto na LC 64/90 (Lei das Inelegibilidades).
Além disso, as multas
eleitorais e sanções pecuniárias impostas aos partidos não são revertidas ao Fundo
de Reparação de Interesses Difusos e Coletivos Lesados. Revertem, isso sim, ao
Fundo Partidário, na conformidade com a Lei 9.096/95 (Lei dos Partidos
Políticos).
Cabe ressaltar a
impossibilidade de celebração de Termo de Ajustamento de Conduta, para obter
compromisso comportamental de candidatos durante o processo eleitoral.
Nessa ordem de ideias,
verdadeiramente, nem tudo o que está na Lei da Ação Civil Pública guarda
correlação com a atuação na esfera eleitoral.
Todavia, isso não significa
dizer-se que o Ministério Público está impedido de instaurar procedimento
prévio à ação judicial eleitoral, porque essa conclusão mostra-se como negação
ao perfil constitucional da instituição.
Para validar-se os
procedimentos preparatórios a cargo do Ministério Público, enquanto
eventualmente não declarada a inconstitucionalidade do art. 105-A da LE, o
Procedimento Preparatório Eleitoral passou a ser disciplinado pela Portaria
499/2014 da PGR, porquanto é poder-dever do MP a apuração de ilícitos
eleitorais e, para tanto, deve dispor de ferramenta legal para a coleta das
informações necessárias ao embasamento de eventual ação eleitoral, sendo-lhe
vedado, obviamente, o exercício do poder de polícia, reservado que está ao juiz
eleitoral competente.
No âmbito do Estado de São
Paulo, há o Ato Normativo n. 834/2014 – PGJ, segundo o qual o PPE poderá ser
instaurado visando à colheita de subsídios necessários à adoção das medidas
cabíveis.
Contudo, impende afirmar-se
que a Lei de Ação Civil Pública tem por escopo a proteção do patrimônio público
e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos. A
própria Constituição Federal dispõe como atribuição institucional do Ministério
Público a promoção da ação civil pública e do inquérito civil público para a
proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros
interesses difusos e coletivos.
Esse instrumento de atuação
foi originariamente criado para a ação civil pública mas, com o decurso do
tempo, tornou-se hábil para embasar outros feitos. Disso resultou a utilização
do inquérito civil para apuração de ilícitos eleitorais. Mencione-se, porque
relevante e oportuno, que a Lei da Ação Civil Pública é anterior à Constituição
da República.
Passou-se, então, a utilizar o
inquérito civil para amparar ações eleitorais, como por exemplo, ação de
captação ilícita de sufrágio, de impugnação de mandato eletivo e de
investigação judicial eleitoral, que não têm a natureza jurídica de ação civil
pública.
O inquérito civil apresenta-se
na condição instrumental que não reclama ficar adstrito à ação civil pública,
revelando-se apto na colheita de elementos destinados a coibir atos de
improbidade administrativa, fraude e abusos de poder, mesmo que no campo do
Direito Eleitoral.
Ao que parece, o que o
legislador quis proibir, inserindo o art. 105-A na LE, foram as consequências
da atuação eventualmente inadequada por parte do órgão do Ministério Público.
Eventuais excessos havidos na
condução das peças, pelo Promotor de Justiça, são sempre episódicos e merecem
ser tratados como exceções, não justificando impedir a utilização do instituto
jurídico, que é o inquérito civil, na área eleitoral. Ressalta-se que os abusos
devem ser coibidos mediante o uso de medidas judiciais, bem como pelo
acionamento dos mecanismos de controle, como o CNMP e as Corregedorias Gerais,
porquanto, no regime republicano e na democracia, trabalha-se dentro da esfera
de responsabilidade jurídica, havendo sempre vias para a correção do excesso.
De outro giro, averbe-se que a
existência da publicidade, com absoluta transparência e a presença do
contraditório no inquérito civil, garantindo-se a incidência dos postulados
constitucionais que contemplam o exercício pleno do direito de defesa,
conferem-lhe ampla validade no campo jurídico, admitindo-se a produção de seus
jurídicos efeitos.
A ação civil pública e o
respectivo inquérito são relevantes ferramentas das quais se serve o Ministério
Público para agir na proteção da sociedade, razão de ser da sua existência.
Olhando-se para o sistema
jurídico como um todo, a partir da Constituição Federal, que contemplou
expressamente a ação civil pública, o fator de discriminação que pretende
explicar a norma contida no art. 105-A da LE não se sustenta, tampouco se
mostra razoável.
A Constituição Federal
consagra os princípios da moralidade, da probidade, o princípio democrático e a
coibição ao abuso do poder e se afasta do bom senso restringir o campo de
atuação do Ministério Público, que age na defesa desses valores nucleares.
A Lei 9.504/97, específica das
eleições, acabou sendo alterada e se “aventurou” em seara alheia, permeando o
terreno da Ação Civil Pública, de maneira inadequada.
Eleições isentas de abusos do
poder, alijadas das máculas e livres, interessam ao conjunto da sociedade, como
manutenção da vontade soberana da população e do Estado Democrático de Direito.
Ressalta-se a existência de
Ação Direta de Inconstitucionalidade, sob n. 4352, que questiona o artigo 105-A
da LE, aguardando pronunciamento do egrégio Supremo Tribunal Federal.
*José Carlos Mascari Bonilha
é Promotor de Justiça Eleitoral