terça-feira, 21 de janeiro de 2020

Brasil: Desinformação nas eleições municipais, por Gilberto Scofield Jr, Luciano Santos e Ariel Kogan


Leia artigo publicado ontem no jornal Folha de S. Paulo :


Conhecimento midiático é proteção à democracia


No dia 30 de agosto passado, o TSE (Tribunal Superior Eleitoral) anunciou seu Programa de Enfrentamento à Desinformação com foco nas eleições de 2020, uma iniciativa bastante aguardada diante da importância que a desinformação em larga escala passou a ter através do uso das redes sociais e aplicativos de mensagens instantâneas em eleições ao redor do planeta, incluindo a eleição brasileira de 2018.
Onze dias antes, a Agência Lupa de Checagem de Fatos, em parceria com o Instituto Tecnologia e Equidade (IT&E) e o Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE), dava início ao primeiro de uma série de eventos em parceria com os Tribunais Regionais Eleitorais (TREs) do país. Começava por Porto Velho, em Rondônia, uma caravana educativa que passou ainda por Amazonas, Pará, Espírito Santo e Minas Gerais. Foram mais de 150 pessoas que participaram, de juízes a mesários, de servidores públicos do Judiciário eleitoral a jornalistas locais. 
O desafio é chegar até as eleições de outubro deste ano —uma das maiores do planeta em termos de candidatos— havendo realizado encontros em todos os TREs brasileiros. A intenção é fortalecer o intenso trabalho de combate à desinformação em prol do próprio processo eleitoral, um dos pilares da democracia, contra diversos ataques —daqueles que começam em insinuações sobre a lisura do processo eleitoral e que partem dos próprios candidatos até investidas orquestradas de grupos dispostos a tumultuar o processo com insinuações de que urnas estão fraudadas ou zonas de votação não estão funcionando.
Não é fenômeno novo, mas com a adoção da desinformação como tática política dos mais diversos grupos do espectro político partidário e ideológico e com o uso cada vez maior das redes sociais como fonte de consumo de conteúdo, o problema ganhou em escala e seriedade. 
O Congresso tem caminhado na direção da criminalização da prática de se criar e espalhar notícias falsas nas redes. Trata-se de uma normatização complexa. Afinal, como distinguir as empresas pagas para disseminar inverdades a respeito de pessoa ou instituição daquela “tia do WhatsApp”, figura que reproduz um conteúdo falso porque recebeu de “pessoa de confiança”, não possui educação midiática ou simplesmente está assustada demais com tudo para discernir o que é certo do que é errado?
As eleições municipais de 2020 apresentam uma enorme complexidade em relação à desinformação acelerada pelo uso de tecnologias, já que em grande parte dos municípios brasileiros não existe uma mídia independente e, principalmente, com capacidade de fazer frente a processos de desinformação em larga escala no nível local. 
Algumas das ações possíveis para os estragos gerados por esses novos processos de desinformação são: uma grande campanha nacional de sensibilização em relação ao consumo e repasse de informação em período eleitoral; a construção de métricas e ferramentas de acompanhamento e monitoramento do impacto da desinformação em processos eleitorais; a preparação das grandes plataformas de tecnologia para antecipar processos de “linchamentos virtuais” durante e fora do processo eleitoral. 
E o caminho que nós acreditamos ser o mais frutífero e escolhemos para contribuir nessa empreitada contra a desinformação é a educação. Queremos que cada cidadão seja um checador preparado e pronto para agir, repassando conhecimentos e fatos, porque a velocidade de proliferação da mentira é mais rápida que a capacidade de checagem do que é verdade. Isso tem que ser freado.
Recente reportagem especial da CNN mostra o caso extremamente bem-sucedido da Finlândia, cujo governo vem desde 2014 (há cinco anos, portanto) espalhando entre estudantes, trabalhadores, servidores e, em especial, jornalistas, conceitos que os ajudem a entender melhor a complexa paisagem digital de hoje. As lições incluem como identificar imagens manipuladas, como verificar informações fora de contexto, como checar dados, como identificar robôs em perfis falsos e por aí vai.
O resultado é que a Finlândia é, hoje, o país com o mais alto nível de educação midiática do mundo. De nossa parte, no caso brasileiro, somos incansáveis na educação midiática e letramento digital. Proteger as eleições da desinformação é também proteger a democracia.
Gilberto Scofield Jr.
Jornalista e diretor de Estratégia e Negócios da Agência Lupa
Luciano Santos
Diretor-executivo do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral
Ariel Kogan
Diretor do Instituto Tecnologia e Equidade

quinta-feira, 2 de janeiro de 2020

EUA: Suprema Corte considera que gerrymander com motivação partidária não está sujeito a apreciação judicial


       Em 27 de junho de 2019, num julgamento polêmico, a Suprema Corte dos Estados Unidos decidiu excluir da apreciação do Poder Judiciário federal a nefasta prática do gerrymandering, quando praticado por motivações partidárias.
Na ocasião, foram julgados conjuntamente dois casos em que os desenhos dos distritos eleitorais eram questionados sob acusação de gerrymander partidário.
         Como se sabe, as eleições legislativas nos EUA são majoritárias uninominais (distritais). A cada dez anos, depois do censo decenal, ocorre  a redistritalização, isto é, o redesenho dos contornos dos distritos, com a finalidade de atender ao princípio uma pessoa, um voto.
Na maior parte dos Estados, esse redesenho incumbe às Assembleias Legislativas. Acontece que as Assembleias Legislativas são órgãos políticos, compostos por representantes eleitos. Assim, elas tendem a redesenhar os contornos dos distritos com base nos mapas eleitorais, de modo a favorecer, se não garantir, a eleição de parlamentares filiados ao partido dominante na Casa. Esse fenômeno é conhecido como gerrymander [1].
            A natureza antidemocrática dessa prática é evidente. Mas, no julgamento conjunto dos casos Rucho v. Common Cause (Carolina do Norte) e Lamone v. Berisek (Maryland), a Suprema Corte de maioria conservadora estimou, por 5 votos a 4, que a prática do gerrymander, quando motivada por interesses partidários, integra o restrito rol das chamadas “questões políticas” que não estão sujeitas a apreciação do Poder Judiciário federal.
Nem todo gerrymander é praticado unicamente com vistas a favorecer um ou outro partido. Nos EUA são frequentes os casos de gerrymander com objetivo de desfavorecer minorias raciais, ou ainda em violação do princípio uma pessoa, um voto.
Nesses casos, a Corte entende que as questões suscitadas pela redistritalização podem sim ser submetidas a julgamento por cortes federais.
        No caso relativo aos distritos congressuais da Carolina do Norte, os demandantes alegavam que a redistritalização diluia o voto dos Democratas; em Maryland, dos Republicanos. Não restou a menor dúvida de que em ambos os casos as Assembleias Legislativas praticaram gerrymander partidário.
            Os demandantes sustentaram que essa prática viola a Primeira Emenda, a Cláusula da Igual Proteção da 14ª Emenda, a Cláusula Eleitoral (art. I, §4), e o artigo I, §2, da Constituição.
Nos dois casos, as cortes inferiores julgaram procedentes os pedidos.
            Mas, no julgamento em cotejo, a Suprema Corte estimou que não há critérios claros, funcionais e politicamente neutros para apurar se um determinado desenho é justo.
O próprio relator, Juiz Roberts, admitiu que o gerrymander é uma prática indesejável, que deve ser suprimida, tecendo loas aos Estados em que a competência para desenhar os contornos dos distritos é atribuída a comissões independentes, e não mais às Assembleias Legislativas.
Em seu enfático voto dissidente, a Juíza Kagan afirmou que “Pela primeira vez na história, esta Corte recusa-se a por fim a uma violação constitucional porque estima que a tarefa está além da capacidade judicial. E não se trata de uma violação constitucional qualquer. O gerrymander partidário nos presentes casos privou os cidadãos do mais fundamental de seus direitos constitucionais: o direito de participar igualmente do processo político, de se juntar a outras pessoas para defender ideias políticas, e de escolher seus representantes políticos”.
            Por um único voto de diferença, ficou decidido que a matéria é de competência do Poder Legislativo e que não cabe a cortes federais julgar se determinado desenho é equitativo e democrático.

REFERÊNCIAS:

LIVNI, Ephrat. The US Supreme Court says partisan gerrymandering is not its problem. Quartz, 27 de junho de 2019. Disponível em: <https://qz.com/1654248/us-supreme-court-says-gerrymandering-is-not-its-problem/>. Acesso em: 1º jan. 2020.

MILLER, Jaelyn; HARRIS, Ariel E. Gerrymandering : A Non-Justiciable Political Question. American Bar Association, 26 de agosto de 2019. Disponível em: <https://www.americanbar.org/groups/litigation/committees/woman-advocate/practice/2019/gerrymandering-a-non-justiciable-political-question/>. Acesso em: 1º jan. 2020.

ROBSON, Ruthann. SCOTUS Finds Partisan Gerrymandering Non-Justiciable Political Question. Constitutional Law Prof Blog, 27 de junho de 2019. Disponível em: <https://lawprofessors.typepad.com/conlaw/2019/06/scotus-finds-partisan-gerrymandering-non-justiciable-political-question.html>. Acesso em: 1º jan. 2020.

SORONEN, Lisa. Supreme Court Holds Partisan Gerrymandering Claims May Not be Litigated. The Council of State Governments, 27 de junho de 2019. Disponível em: <https://knowledgecenter.csg.org/kc/content/supreme-court-holds-partisan-gerrymandering-claims-may-not-be-litigated>. Acesso em: 1º jan. 2020.



[1] Sobre o gerrymandering nos EUA discorri no meu livro Direito Eleitoral Comparado – Brasil, Estados Unidos, França (Saraiva, São Paulo, 2009), nas págs. 285-289, 293-205, 296-297 e 302.