quinta-feira, 2 de janeiro de 2020

EUA: Suprema Corte considera que gerrymander com motivação partidária não está sujeito a apreciação judicial


       Em 27 de junho de 2019, num julgamento polêmico, a Suprema Corte dos Estados Unidos decidiu excluir da apreciação do Poder Judiciário federal a nefasta prática do gerrymandering, quando praticado por motivações partidárias.
Na ocasião, foram julgados conjuntamente dois casos em que os desenhos dos distritos eleitorais eram questionados sob acusação de gerrymander partidário.
         Como se sabe, as eleições legislativas nos EUA são majoritárias uninominais (distritais). A cada dez anos, depois do censo decenal, ocorre  a redistritalização, isto é, o redesenho dos contornos dos distritos, com a finalidade de atender ao princípio uma pessoa, um voto.
Na maior parte dos Estados, esse redesenho incumbe às Assembleias Legislativas. Acontece que as Assembleias Legislativas são órgãos políticos, compostos por representantes eleitos. Assim, elas tendem a redesenhar os contornos dos distritos com base nos mapas eleitorais, de modo a favorecer, se não garantir, a eleição de parlamentares filiados ao partido dominante na Casa. Esse fenômeno é conhecido como gerrymander [1].
            A natureza antidemocrática dessa prática é evidente. Mas, no julgamento conjunto dos casos Rucho v. Common Cause (Carolina do Norte) e Lamone v. Berisek (Maryland), a Suprema Corte de maioria conservadora estimou, por 5 votos a 4, que a prática do gerrymander, quando motivada por interesses partidários, integra o restrito rol das chamadas “questões políticas” que não estão sujeitas a apreciação do Poder Judiciário federal.
Nem todo gerrymander é praticado unicamente com vistas a favorecer um ou outro partido. Nos EUA são frequentes os casos de gerrymander com objetivo de desfavorecer minorias raciais, ou ainda em violação do princípio uma pessoa, um voto.
Nesses casos, a Corte entende que as questões suscitadas pela redistritalização podem sim ser submetidas a julgamento por cortes federais.
        No caso relativo aos distritos congressuais da Carolina do Norte, os demandantes alegavam que a redistritalização diluia o voto dos Democratas; em Maryland, dos Republicanos. Não restou a menor dúvida de que em ambos os casos as Assembleias Legislativas praticaram gerrymander partidário.
            Os demandantes sustentaram que essa prática viola a Primeira Emenda, a Cláusula da Igual Proteção da 14ª Emenda, a Cláusula Eleitoral (art. I, §4), e o artigo I, §2, da Constituição.
Nos dois casos, as cortes inferiores julgaram procedentes os pedidos.
            Mas, no julgamento em cotejo, a Suprema Corte estimou que não há critérios claros, funcionais e politicamente neutros para apurar se um determinado desenho é justo.
O próprio relator, Juiz Roberts, admitiu que o gerrymander é uma prática indesejável, que deve ser suprimida, tecendo loas aos Estados em que a competência para desenhar os contornos dos distritos é atribuída a comissões independentes, e não mais às Assembleias Legislativas.
Em seu enfático voto dissidente, a Juíza Kagan afirmou que “Pela primeira vez na história, esta Corte recusa-se a por fim a uma violação constitucional porque estima que a tarefa está além da capacidade judicial. E não se trata de uma violação constitucional qualquer. O gerrymander partidário nos presentes casos privou os cidadãos do mais fundamental de seus direitos constitucionais: o direito de participar igualmente do processo político, de se juntar a outras pessoas para defender ideias políticas, e de escolher seus representantes políticos”.
            Por um único voto de diferença, ficou decidido que a matéria é de competência do Poder Legislativo e que não cabe a cortes federais julgar se determinado desenho é equitativo e democrático.

REFERÊNCIAS:

LIVNI, Ephrat. The US Supreme Court says partisan gerrymandering is not its problem. Quartz, 27 de junho de 2019. Disponível em: <https://qz.com/1654248/us-supreme-court-says-gerrymandering-is-not-its-problem/>. Acesso em: 1º jan. 2020.

MILLER, Jaelyn; HARRIS, Ariel E. Gerrymandering : A Non-Justiciable Political Question. American Bar Association, 26 de agosto de 2019. Disponível em: <https://www.americanbar.org/groups/litigation/committees/woman-advocate/practice/2019/gerrymandering-a-non-justiciable-political-question/>. Acesso em: 1º jan. 2020.

ROBSON, Ruthann. SCOTUS Finds Partisan Gerrymandering Non-Justiciable Political Question. Constitutional Law Prof Blog, 27 de junho de 2019. Disponível em: <https://lawprofessors.typepad.com/conlaw/2019/06/scotus-finds-partisan-gerrymandering-non-justiciable-political-question.html>. Acesso em: 1º jan. 2020.

SORONEN, Lisa. Supreme Court Holds Partisan Gerrymandering Claims May Not be Litigated. The Council of State Governments, 27 de junho de 2019. Disponível em: <https://knowledgecenter.csg.org/kc/content/supreme-court-holds-partisan-gerrymandering-claims-may-not-be-litigated>. Acesso em: 1º jan. 2020.



[1] Sobre o gerrymandering nos EUA discorri no meu livro Direito Eleitoral Comparado – Brasil, Estados Unidos, França (Saraiva, São Paulo, 2009), nas págs. 285-289, 293-205, 296-297 e 302.