e-Leitoral: Publicidade
institucional e a minirreforma eleitoral de 2015, por Luiz Magno P. Bastos Jr.
Luiz Magno P. Bastos Jr. é Advogado
eleitoralista. Doutor em Direito (UFSC) e Pós-Doutor em Direitos Humanos
(McGill University, Montreal). Membro fundador da Academia Brasileira de
Direito Eleitoral e Político e da Academia Catarinense de Direito Eleitoral.
Membro das Comissões de Direito Eleitoral e de Direito Constitucional da
OAB/SC. Professor do Mestrado e Doutorado em Ciência Jurídica e da Graduação em
Direito da Universidade do Vale do Itajaí.
Desde que
foi aprovada a Emenda da Reeleição (EC n. 16/97), a Lei Geral das Eleições
procurou conter um dos efeitos imediatos daí decorrentes: a flagrante desigualdade
de oportunidades entre o atual mandatário e qualquer outro candidato que
pretenda sucedê-lo.
A desigualdade é tamanha (e insuperável) que, em minhas aulas de direito
constitucional, costumo de dizer que só consigo compreender a legitimidade do
instituto da reeleição se o mandato do Executivo for compreendido como um
mandato de 8 (oito) anos, com a necessidade de submissão a um referendo popular
no meio do percurso. Um recallinstitucionalizado e pré-definido que
faria as vezes de uma moção de confiança. Ou seja, muito mais do que uma
decisão de revogação de mandato, seria uma espécie de renovação da confiança
depositada no representante.
É óbvio que
essa analogia é precária e representa, muito mais, uma percepção pessoal sobre
o impacto que a reeleição causa na garantia constitucional de igualdade de
oportunidades. Reconheço ainda que esta medida é saudada por alguns como um
incentivo ao “voto prospectivo” (voto centrado na premiação do “bom”
administrador) e, ainda, que existem estudos que demonstram não ter sido
significativa a vantagem em eleições municipais realizadas desde então.
O fato é
que, exitosa ou não a empreitada, o empenho do mandatário em obter êxito no
pleito em que concorre a reeleição é, em geral, mais intenso do que o esforço
empreendido para emplacar o seu sucessor. Afinal de contas, ninguém gosta de
perder eleições e, mais ainda, perder uma disputa em que concorre à reeleição
pode representar risco concreto à sua “sobrevivência política”.
Esse maior
engajamento, não raras vezes, repercute em um maior envolvimento da máquina
administrativa no esforço eleitoral. Ou melhor, o esforço de determinados
servidores motivados por convicção política, por espírito cívico e, também, por
óbvio, com desejo de manutenção de suas posições. Todos elas motivações
igualmente legítimas.
A questão
fundamental (e de difícil equacionamento) consiste em discutir qual o limite
para esse engajamento. Quais condutas administrativas podem ser reconhecidas
como aceitáveis? E, entre essas irregularidades, quais seriam aquelas capazes
de justificar a mais graves de todas as sanções em matéria eleitoral: a perda
do mandato.
Trata-se da
mais grave sanção porque ela atinge (e pune) não somente o agente político que
a realiza (ou dela se beneficia), mas retira do eleitor o direito de escolha,
ou pior ainda, anula a escolha que fez no exercício de seu direito fundamental
de participação democrática. A intervenção da Justiça Eleitoral, portanto, só
estaria constitucionalmente autorizada tendo em vista o dever constitucional de
se assegurar a legitimidade do pleito (abuso de poder econônico, corrupção ou
fraude), nos termos do art. 14, § 10 da Constituição Federal.
A
(tentativa) de resposta veio com a edição da Lei Geral e com a estabilização
das condutas proibidas com uma pretensão de permanência. A lei passou a definir
um conjunto de situações em que se presumia a existência de desequilíbrio
eleitoral: as chamadas condutas vedadas.
Pronto. Fiat lux! A desigualdade de oportunidades seria
combatida através da definição de um conjunto de proibições, definidas a partir
da consolidação de práticas institucionais a serem combatidas.
Mas a
estória não é bem assim. Se as transformações sociais dependessem da edição de
boas leis e de virtuosas boas intenções, estaríamos mais próximos da
consciência cívica das democracias escandinavas do que atualmente estamos.
Além disso, a própria lei também tem os seus problemas que, muitas
vezes, parecem ser válvulas de escape colocadas intencionalmente na norma por
parte daqueles que podem se beneficiar delas: a classe política. Essa, no
entanto, é questão a ser discutida em outro post.
Voltemos,
pois, às condutas vedadas. Mais especificamente, àquela a que me propus
discutir nessa postagem: a regulação da publicidade institucional.
A lei previu
originariamente dois tipos de restrição à veiculação de publicidade
institucional em anos eleitorais: (i) proibiu que fosse veiculada durante o
período crítico das eleições (nos três meses que antecedem o pleito); e (ii)
restringiu o limite de gastos com esta rubrica durante o ano eleitoral.
Qual o
critério a ser utilizado para estabelecer este limite? A lei estabelecia ser
vedado ao administrador “realizar, em ano de eleição, despesas com publicidade”
“que excedam a média dos gastos nos três últimos anos que antecedem o pleito ou
do último ano imediatamente anterior à eleição”.
Este
dispositivo apresentava, de imediato, duas questões interpretativas relevantes:
a primeira, qual dos valores deve ser considerado o teto já que a lei usa a
conjunção “ou”?; a segunda, a lei autoriza que sejam efetuados gastos em um
único semestre equivalentes a média dos gastos do ano anterior ou a metade dos
gastos?
Em relação à primeira questão, a Justiça Eleitoral
consolidou o entendimento de que deveria ser adotado o “menor” dos dois valores
obtidos. Pretendia-se diminuir, dessa forma, as diferenças de uma relação já
diferenciada. A questão revelar-se-ia ainda mais evidente nas hipóteses em que
o administrador aumentasse, no ano imediatamente anterior ao das eleições, as despesas
com essa rubrica (o que o beneficiaria, em tese, duas vezes: pelo aumento da
exposição de mensagens positivas sobre a administração e o próprio aumento do
limite para gastos no ano eleitoral propriamente dito).
Uma vez
mais, a Justiça Eleitoral via-se diante de uma difícil “escolha”: aplicar
interpretação de norma restritiva de direitos de forma extensiva (contrariando
sua função contramajortiária de garantia de direitos) ou avalizar condutas
destinadas a fraudar o limite legal fixado (guardiã da legitimidade dos pleitos
eleitorais)?
Em relação à segunda questão, a Justiça Eleitoral aplicou o
entendimento mais garantista segundo o qual o Judiciário não poderia ampliar a
restrição para além do limite textual da norma. Esse entendimento, no entanto,
mudou. Por provocação da Corte Eleitoral catarinense, que deliberadamente
defendia a necessidade de revisão desse critério de interpretação, o Tribunal
Superior Eleitoral sinalizou que iria mudar o seu entendimento sobre o tema.
Em decisão
proferida em 24.3.2015 (REspE n. 336-45), o Tribunal Superior Eleitoral manteve
a cassação de prefeito por prática de conduta vedada relacionada à veiculação
de publicidade institucional. Apesar de não ter sido o fundamento único do
acórdão (já que o Regional havia reconhecido que existia ofensa ao princípio da
impessoalidade nessas publicações institucionais), o TSE não infirmou essa
premissa. E, nesse julgamento, admoestou sobre a necessidade de mudança desse
critério.
Como
resposta a essa provocação (?), a questão foi incluída na agenda da reforma
política e eleitoral, que tramitou durante o ano de 2015, de maneira açodada e
virada de costas para as ruas. A matéria foi, enfim, incorporada ao texto da
Lei Geral das Eleições, por força da (mais nova) minirreforma (a Lei n. 13.165/2015).
O parâmetro de aferição dos gastos passou a ser o primeiro semestre de
cada ano. Tanto na definição da conduta a ser regulada (as despesas com
publicidade no primeiro semestre do ano), quanto na definição do parâmetro de
referência (leva-se em conta, exclusivamente, a média dos gastos
realizados no primeiro semestre dos três últimos anos).
Sem dúvida,
a alteração provoca uma racionalização da utilização dos recursos e oferece uma
solução aparentemente mais equânime em relação à utilização de uma importante
ferramenta de propaganda eleitoral antecipada (a veiculação da imagem de boa
administração).
Refiro-me
propositadamente à expressão “propaganda eleitoral antecipada” sem deixar de
reconhecer que, de acordo com a jurisprudência consolidada do TSE, não é
qualquer publicidade institucional que está apta a configurar “propaganda
antecipada”, mas aquela por meio da qual ocorre alusão ao pleito vindouro, ou
ainda, que promove a imagem do próprio administrador (configurado ofensa
autônoma ao princípio da impessoalidade).
Refiro-me aqui à “propaganda antecipada” em um sentido mais amplo. Em
relação à vantagem (lícita) decorrente da exposição reiterada da imagem de “boa
administração” que, em um contexto de redução do tempo de propaganda eleitoral
estrito senso, representa um aumento significativo na vantagem competitiva do
atual ocupante do cargo público (ou daquele por si apoiado). Questão muito bem
apontada no paradoxo apresentado pelo brilhante e provocativo colega Fernando
Neisser, no post que me antecedeu em nosso e-Leitor (clique aqui).
Indubitavelmente, nesse ponto, a minirreforma andou bem ao estabelecer
critérios mais condizentes com o propósito definido na norma de preservar a
igualdade de oportunidades. Questão igualmente ressaltada de maneira bastante
precisa pelo eminente Ministro do TSE, Henrique Neves, no post que inaugurou
essa coluna (clique aqui).
A crítica
aqui dirigida vai em duas direções: a primeira, naquilo em que a norma deixou
de regular e, por conseguinte, deixa margem a inúmeras controvérsias quanto à
configuração do ilícito eleitoral; a segunda, na falta de clareza por parte da
jurisprudência eleitoral quanto aos critérios a serem utilizados para se aferir
o abuso a justificar a medida extrema de cassação do registro do candidato, ou
seu diploma caso tenha sido eleito.
A primeira
questão diz respeito à qualificação do que vem a ser “publicidade
institucional”. A segunda diz respeito aos critérios a serem utilizados para
que a Justiça Eleitoral aplica a sanção mais extrema de cassação do mandato.
O
enfrentamento dessas questões é ainda mais necessário quando se está às
vésperas de eleições municipais gerais. Maravilhoso palco para experimentação
jurisprudencial. Quando ocorrem eleições em mais de 5 mil municípios, com as
mais variadas características.
A primeira
dificuldade decorre da falta de definição legal sobre o sentido e alcance a ser
atribuído à expressão “publicidade institucional”. Afinal de contas, quais
tipos de gastos este conceito engloba. Isso é assim porque o conceito pode
compreender diversas espécies de despesas: publicações legais, confecção de
material publicitário de campanhas específicas, despesas com informações de
obras públicas, diferentes ações junto às empresas de comunicação (produção de
programas de rádios e TV) e, inclusive, diversas despesas “ordinárias” do setor
de comunicação social da entidade.
Ocorre que
esse conjunto tão díspar de despesas não é classificado sob a mesma rubrica
orçamentária. As leis orçamentárias distribuem esses gastos em diferentes rubricas
que, ainda, são objeto de regulamentações específicas por parte dos Tribunais
de Contas que impedem (ou dificultam) um inteiro controle sobre a execução
dessas despesas. Tanto em relação aos órgãos internos de controle. Quanto em
relação às instâncias de controle da aplicabilidade do limite definido na lei
eleitoral.
Nos
processos eleitorais, chegam-se a números que são adotados como verdades
insofismáveis, sem que se tenha, muitas vezes, apreciada a natureza dessas
despesas. Despesas são glosadas (excluídas do montante), ou são incluídas no
cálculo, com base em informações pouco precisas. Muitas vezes, tão-somente,
pela descrição feita na nota de empenho.
Esta
imprecisão da norma (e o descompasso entre o seu propósito e o que ela consegue
regular) está diretamente relacionada à inclusão de um elemento estranho ao
direito eleitoral, o direito orçamentário. Ao utilizar de parâmetro externo
para aferição das condutas vedadas, notadamente, afeito ao controle externo
exercido pelos Tribunais de Contas, essas imprecisões tendem a se avolumar pela
falta de um diálogo claro entre estas instâncias de controle.
Ainda que a
norma regulamentasse com mais precisão esse aspecto, ela seria capaz de dirimir
estas controvérsias? Em que medida o Tribunal Superior Eleitoral está
legitimado a regulamentar essa questão? A necessidade de clareza sobre este
elemento (publicidade institucional) se compatibiliza com as necessidades de
definição de parâmetros de controle (interno e externo) da Administração
Pública? Há espaço para harmonização regulamentar dessa matéria em relação aos
diferentes tribunais de contas do país?
Nesse
quesito, não faltam incertezas. Há muitos caminhos para burlar o sistema de
controles. Há muitas surpresas que podem se apresentar aos administradores que
pretendem ater-se aos limites legais.
A segunda
questão, relacionada à aplicação da sanção extrema de cassação do diploma, diz
respeito à própria percepção sobre o papel a ser exercido pelo Poder Judiciário
no exercício do controle de legitimidade do pleito.
A Justiça
Eleitoral tem a função messiânica de purificação das eleições e das práticas
institucionais? Ou a Justiça Eleitoral deve atuar como última barreira do
controle da legalidade?
Mais uma
vez, estamos diante de uma tormentosa questão que está a desafiar uma postagem
especifica, ou melhor, uma reflexão bastante abrangente sobre qual Justiça
Eleitoral temos e queremos ter.
Pois bem,
por hora, voltemos à questão referente à publicidade institucional.
O problema
que se apresenta é quais os critérios devem ser levados em conta para que a
Justiça Eleitoral reconheça que a extrapolação dos gastos permitidos seja capaz
de ferir de morte a legitimidade do pleito?
É necessário
que discutamos isso de maneira mais clara para que sejam evitadas restrições
indevidas no direito de sufrágio da população, manifestado através de eleições
livres, diretas e periódicas.
De plano,
contudo, creio que algumas premissas parecem-me inaceitáveis.
(i) toda reeleição, per si, afeta o desequilíbrio do pleito.
Portanto, a Justiça Eleitoral deve ser menos tolerante a extrapolações nas
condutas vedadas.
Esse
argumento é perigoso. No fundo, ele está ancorado em uma pré-compreensão de que
a reeleição é um mal em si e deve ser combatida. Posso não gostar da reeleição
(e como vocês puderam perceber antes, possuo profundas reservas quanto ao
instituto), mas ele tem índole constitucional. Enquanto essa regra se mantiver,
ela integra o parâmetro de controle de legitimidade das eleições. Isto posto, a
medida extrema de cassação não pode ser feita com base em juízo baseado em
violação a dispositivo que presume o desequilíbrio do pleito (art. 73 da Lei
Geral das Eleições), mas deve estar assentada em um juízo fundamentado sobre a
existência concreta de abuso, corrupção ou fraude (art. 14, § 10 da CF). Em se
tratando de publicidade institucional, esse juízo concreto exige que sejam
considerados outros elementos que não a extrapolação dos gastos.
(ii) gastos
públicos com publicidade institucional são excessivos e acabam por desviar
recursos de outras áreas sensíveis.
Essa premissa é igualmente perigosa. Ao proceder dessa forma, corre-se o
risco do Judiciário usurpar a competência do Poder Legislativo (responsável por
aferir a legitimidade da decisão política de alocação de recursos) e, ultima
ratio, da própria população a quem os representantes possuem o dever
de accountability. Na arena política, é legítimo perquirir as
escolhas políticas e as prioridades na alocação dos recursos públicos. Nesta
seara, compartilho integralmente com essa premissa. Na arena judicial, este
critério não pode ser utilizado como razão, per si, a justificar a
imposição da sanção mais gravosa.
Como vocês
podem perceber, trago mais inquietações do que respostas. Mas, creio, seja
exatamente esta a proposta desta coluna: provocar o debate, fomentar a crítica,
desinstalar.
Se por um
lado, acredito que a igualdade de oportunidades representa uma quimera
irrealizável. Por outro lado, creio que o desenvolvimento das instituições
democráticas depende da adoção deste ideal regulativo como diretriz, como
norte, como luzeiro a orientar todo nosso caminhar.
Afinal de
contas, prover mecanismos capazes de assegurar o máximo de oportunidades, “em
condições de igualdade”, representa exigência que transcende o nosso
compromisso constitucional, mas que decorre do concerto que une a comunidade de
nações latino-americanas, tendo em vista a “consolidação dos valores
democráticos e para a liberdade e a solidariedade no hemisfério” (Carta
Democrática Interamericana).