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Sem dúvida, um ponto importante do debate sobre a
Lei 13.165, de 29 de setembro de 2015, repousará na análise do novo § 3º
do artigo 224 do Código Eleitoral.
Segundo o aludido dispositivo, “a decisão da
Justiça Eleitoral que importe o indeferimento do registro, a cassação do
diploma ou a perda do mandato de candidato eleito em pleito majoritário
acarreta, após o trânsito em julgado, a realização de novas eleições,
independentemente do número de votos anulados.”
Referida norma parece haver definido o fim da
hipótese em que o segundo colocado assumiria o cargo eletivo em caso de
desconstituição do diploma ou do próprio mandato.
Verifica-se, todavia, que o caput do
artigo 224 do Código Eleitoral dispõe expressamente de modo contrário.
Segundo a disposição legal, “se a nulidade atingir a mais de metade dos votos
do país nas eleições presidenciais, do Estado nas eleições federais e estaduais
ou do município nas eleições municipais, julgar-se-ão prejudicadas as demais
votações e o Tribunal marcará dia para nova eleição dentro do prazo de 20
(vinte) a 40 (quarenta) dias”.
O legislador
pretendeu estabelecer uma exceção à regra contida no caput do
artigo 224 do Código Eleitoral. Isso, todavia, não ocorreu. Diversamente,
incidiu, numa antinomia grave a ponto de afastar a aplicabilidade da inovação
normativa.
O fato é
que, como será exposto a seguir, o aludido § 3º do artigo 224 do Código
Eleitoral não contém uma exceção à regra estipulada pelo caput do
dispositivo. Isso porque, excluídas as situações ventiladas pelo parágrafo sob
estudo, não resta qualquer outra hipótese de nulidade de toda a votação
concedida a um candidato.
O Código Eleitoral previu duas distintas
consequências para o reconhecimento da nulidades.
Nas hipóteses ventiladas nos artigos 220 e 221 do
Código não se pode falar em nulidade de toda a votação, senão das cédulas e
seções comprometidas pelas falhas relacionadas nos dispositivos.
Segundo o artigo 220, "É nula a votação:
I - quando feita perante mesa não nomeada pelo juiz eleitoral, ou constituída
com ofensa à letra da lei; II - quando efetuada em folhas de votação falsas;
III - quando realizada em dia, hora, ou local diferentes do designado ou
encerrada antes das 17 horas; IV - quando preterida formalidade essencial do
sigilo dos sufrágios; V - quando a seção eleitoral tiver sido localizada com
infração do disposto nos §§ 4º e 5º do art. 135."
Já o artigo 221 reputa anulável a votação nos
seguintes casos: I - quando houver extravio de documento reputado essencial; II
- quando for negado ou sofrer restrição o direito de fiscalizar, e o fato
constar da ata ou de protesto interposto, por escrito, no momento; III - quando
votar, sem as cautelas do Art. 147, § 2º: a) eleitor excluído por sentença não
cumprida por ocasião da remessa das folhas individuais de votação à mesa, desde
que haja oportuna reclamação de partido; b) eleitor de outra seção, salvo a
hipótese do Art. 145; c) alguém com falsa identidade em lugar do eleitor
chamado
Como se percebe, todas as hipóteses previstas nos
artigos 220 e 221 do Código Eleitoral têm em comum o fato de não dizerem
respeito a faltas atribuídas a um candidato, mas a vícios observados na
administração das eleições. Outro ponto de contato entre essas previsões legais
reside no seu alcance: não há falar-se na anulação da votação atribuída a um
candidato, mas na declaração de nulidade das seções atingidas nos termos do que
dita o artigo 187 do Código Eleitoral.
Situação distinta ocorre quando se questiona, em
ação ou representação eleitoral, a ocorrência de conduta ilícita ou falta de
requisito para a elegibilidade de um candidato.
Segundo preceitua o artigo 222 do Código
Eleitoral,"é também anulável a votação, quando viciada de falsidade,
fraude, coação, uso de meios de que trata o art. 237, ou emprego de processo de
propaganda ou captação de sufrágios vedado por lei."
Esse artigo 222 contém o enunciado geral que
informa todo o tema da cassação de registros, diplomas e mandatos por
infringência a normas eleitorais. Em lugar de dispor sobre de nulidade em
determinado ato do processo eleitoral, ele estenderá seus efeitos sobre toda a
votação obtida pelo candidato. A ele claramente se dirige a regra contida no
artigo 224 do Código Eleitoral.
A diferença entre as consequências previstas no
Código Eleitoral para os casos de nulidade reside, pois, na seguinte fórmula:
a) ocorrente a nulidade de votos, cédulas e sessões eleitorais (artigos
165, 166, 220 e 221 do Código), realizam-se, caso necessário, eleições
suplementares, convocados apenas os eleitores inscritos nas sessões atingidas;
b) se, todavia, a nulidade se abate sobre toda a
votação atribuída a um candidato, aí o caso se resolve nos termos docaput do
artigo 224 do Código Eleitoral.
Assim, a
nulidade capaz de acarretar a renovação das eleições ou a posse do segundo
colocado, sempre será aquela “que importe o indeferimento do
registro, a cassação do diploma ou a perda do mandato de candidato eleito”, já
que a isso se refere todo o artigo 222.
Isso quer
dizer que o artigo 224 nunca será aplicável a outros
casos que não àqueles a que se refere o parágrafo 3º agora introduzido no
dispositivo de lei.
Sendo assim,
a pretexto de estabelecer uma exceção à regra do caput, o parágrafo
3º entrou em choque aberto com aquela primeira disposição. O caput do
artigo 224 só é aplicável aos mesmos casos a que se reporta o § 3º do caput do
mesmo dispositivo. Não houve exceção à regra geral contida no caput, mas
disputa aberta entre esta última disposição e o teor do § 3º.
Dá-se a isso o nome de “antinomia”.
Ocorre a
“antinomia”, ou “lacuna de conflito” [1],
sempre que duas ou mais normas jurídicas expressam enunciados de conteúdo
conflitante, cobrando do aplicador do direito a adoção de uma ou outra.
Discorrendo sobre o tema, Hans Kelsen prelecionou:
“Um tal conflito de normas surge quando uma norma determina uma certa
conduta como devida e outra norma determina também como devida uma outra conduta,
inconciliável com aquela. Assim sucede, por exemplo, quando uma das normas
determina que o adultério deve ser punido e a outra que o adultério não deve
ser punido; ou quando uma determina que o furto deve ser punido com a morte e a
outra determina que o furto deve ser punido com prisão (e, portanto, não é com a morte
que deve ser punido).” (1998, 143).
A antinomia
pode ser igualmente compreendida como um paradoxo que, nas palavras de Rescher,
citado por Perez, constitui um “set of propositions that are individually
plausible but collectivelly inconsistent” (2006, 5). A antinomia,
constitui, assim, uma contradição interna ao sistema normativo (self-contradiction)
marcada pelo entrechoque de enunciados isoladamente válidos, mas inconciliáveis
entre si.
É papel do aplicador do direito, após se assegurar
“(…) dos fatos estabelecidos ou para provar, (…) escolher a regra de direito
que lhe é aplicável ali” (Rigaux, 2000, 48). Essa operação lógica é dificultada
pela antinomia, que precisa ser submetida à atividade do intérprete para que se
opere a sua remoção.
Três são os critérios ou princípios comumente
aceitos para a superação das antinomias: o cronológico, o da especialidade e o
hierárquico.
Interessa-nos o critério hierárquico.
Sobre esse ponto nos ensinava Kelsen que “(…) os
conflitos de normas no material normativo que lhe é dado
— ou melhor, proposto — podem e devem necessariamente ser resolvidos
pela via da interpretação.” (1998, 144). E afirmava a existência de uma “construção escalonada
de normas supra e infra-ordenadas umas às outras, em que uma norma do
escalão superior determina a criação da norma do escalão inferior” (1998, 144).
Posteriormente,
em sua Teoria Geral do Direito e do Estado, Hans Kelsen proporia:
“O caráter alternativo da norma superior que determina a norma inferior
impede qualquer real contradição entre a norma superior e a inferior. (…)
qualquer opinião referente à existência de uma contradição que não a dessa
autoridade é juridicamente irrelevante. A autoridade competente estabelece a
existência jurídica de tal contradição anulando a norma inferior” (1998b, 232).
A hierarquia que rege a relação entre normas,
posicionando-as como superiores ou inferiores, não diz respeito apenas ao
escalonamento entre a normas fundamentais e as previstas nas leis. Ela também
se observa no interior de um mesmo dispositivo.
A redação de um artigo deve observar rigorosa
previsão contida na Lei Complementar 95/1998, que dispõe sobre a elaboração, a
redação, a alteração e a consolidação das leis, em conformidade com o que
preceitua o parágrafo único do artigo 59 da Constituição Federal.
Consoante estabelece o artigo 10 da referida
lei,
“Art. 10. Os textos legais serão articulados com observância dos
seguintes princípios:
I - a unidade básica de articulação será o artigo, indicado pela
abreviatura "Art.", seguida de numeração ordinal até o nono e
cardinal a partir deste;
II - os artigos desdobrar-se-ão em parágrafos ou em incisos; os
parágrafos em incisos, os incisos em alíneas e as alíneas em itens; (…)”.
A cabeça, ou caput,
do dispositivo deve conter a proposição básica sobre a qual ele versa. Os
demais componentes do artigo — parágrafos, incisos, alíneas — devem constituir
desdobramentos lógicos do enunciado contido na parte inaugural do comando
normativo.
Por isso mesmo, o artigo 11, III, c, da LC
95/98, estipula:
“Art. 11. As disposições normativas serão redigidas com clareza,
precisão e ordem lógica, observadas, para esse propósito, as seguintes normas:
III - para a obtenção de ordem lógica;
c) expressar por meio dos parágrafos os aspectos complementares à norma
enunciada no caput do artigo e as exceções à regra por este estabelecida;”
A referida norma estabelece, como se vê, uma função
dúplice para o parágrafo: complementar o sentido do enunciado contido na cabeça
do dispositivo e definir eventuais exceções à sua aplicabilidade.
Em ambos os casos, não é autorizada a redação de
parágrafos em conflito com o enunciado principal do artigo. Estipular exceções
não corresponde a estabelecer essa conflitividade. Diversamente, implicam em
articular os casos em que a proposição receberá solução diversa da
genericamente contemplada no caput.
Essa afirmativa é corroborada por Felipe Fernandes:
“O parágrafo constitui-se numa divisão do artigo destinada a tratar de
uma disposição secundária que explica ou modifica (excepciona ou restringe) a
disposição principal (art. 11, III, “c”, LC no 95). Portanto, o parágrafo não
deve formular regras gerais nem princípios básicos, mas limitar-se a
complementar o caput do artigo. Deve haver uma conexão material entre o
parágrafo e o caput do artigo. O enunciado do parágrafo não é autônomo,
devendo estar intimamente relacionado à parte inicial do artigo.” (s.a.,
online).
Como se percebe, o parágrafo está logicamente
submetido ao conteúdo da cabeça do artigo, não podendo com este rivalizar. Eis
uma premissa a ser observada na interpretação do dispositivo. Em caso de antinomia
entre o parágrafo e o caput deve o hermeneuta privilegiar este em detrimento
daquele.
Como se viu no início deste artigo, existe uma
evidente contradição entre o texto do caput do artigo 224 do Código
Eleitoral e § 3º. Enquanto o primeiro afirma que a renovação das eleições só
correrá quando ocorrer a anulação de mais de 50% dos votos, o segundo parece
dispor que a designação de novo pleito que é medida que sempre se imporá em
todos os casos de desconstituição do diploma eleitoral ou do mandato eletivo.
Não há nisso a abertura de uma exceção, mas, pelas
razões acima pontuadas, franca divergência entre o § 3º e o caput do
artigo 224 do Código Eleitoral.
Forçoso
reconhecer que o parágrafo 3º introduzido no artigo 224 não pode
pretender revogar o quanto definido no caput do mesmo artigo
de lei, o que atentaria contra todo bom senso. Isso implica afirmar que a regra
da posse do segundo colocado nos casos que o candidato cassado teve menos de
50% dos votos é medida que continua a se impor sem qualquer alteração
substancial.
Trata-se de regra de antiga aplicação no foro
eleitoral, declarada acorde com a Constituição por diversas vezes no âmbito do
Tribunal Superior Eleitoral, e que tem diversos méritos:
·
trata de forma diversa situações essencialmente
distintas, reservando a medida extrema da renovação das eleições para os casos
em que os candidatos destituídos de suas posições conseguiram votação de grande
envergadura;
·
reserva aos casos de evidente necessidade a
realização do grande investimento de recursos econômicos necessários para a
mobilização do aparato administrativo exigido para a organização do novo
pleito.
Com efeito, a posse do segundo colocado, nas
hipóteses em que a lei a admite, é medida que vem sendo adotada sem qualquer
questionamento social. Além disso, tem o mérito de mobilizar a atenção de todos
os participantes do prélio eleitoral com relação ao modo com que seus
adversários se portam.
Grande parte das demandas eleitorais em que se
atribui aos candidatos a utilização de vias ilícitas é justamente proposta por
aqueles que têm a expectativa de ver reparada a injustiça de serem derrotados
por quem desafiou a legislação ao longo do pleito
O artigo 224 do Código Eleitoral institui
verdadeira política institucional que estimula a participação de todos os
concorrentes na fiscalização da legitimidade do pleito.
* Márlon Reis é juiz de Direito, doutor em
Sociologia Jurídica e Instituições Políticas pela Universidad de Zaragoza,
autor do livro Direito Eleitoral
Brasileiro.
Referências bibliográficas
- Kelsen, Hans. Teoria pura do direito. T. João BaptistaMachado]. 6a ed. - São Paulo: Martins Fontes, 1998.
- Kelsen, Hans. Teoria pura do direito. T. João BaptistaMachado]. 6a ed. - São Paulo: Martins Fontes, 1998.
- Kelsen, Hans. Teoria geral do direito e do
estado. T. Luís Carlos Borges. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2000.
- Rigaux, François. A lei dos juízes. T. Edmir
Missio. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2000.
- Perez,
Oren. Law in the air; a prologue to the world of legal paradoxes. In: Perez,
Oren e Teubner, Gunther (editores). Paradoxes and inconsistencies in the law. Portland: Hart Publishing. pp. 3-37.
- Ráo, Vicente. O direito e a vida dos direitos. 5ª
Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999.
- Fernandes,
Felipe Nogueira. Legística aplicada ao Poder Executivo. Disponível em http://abejur.org.br/Anexos/Portal/Cursos/Leg%C3%ADstica%20Aplicada%20ao%20Poder%20Executivo.pdf.
Acesso em: 13 de novembro de 2015.
[1]
Sobre a expressão “lacuna de conflito”, Kelsen afirmava: “Como, porém, o Direito
vigente é sempre aplicável, pois não há “lacunas” neste sentido, esta fórmula, quando se penetre o seu
caráter fictício, não opera a pretendida limitação do poder atribuído ao
tribunal, mas a auto-anulação da mesma” (1998, 173).