A leitura conjunta de decisões do
Supremo Tribunal Federal e do Tribunal Superior Eleitoral sobre matérias
conexas leva à conclusão de que a alínea c
do art. 1º, I, da Lei das Inelegibilidades (LC nº 64/1990), com redação dada
pela Lei da Ficha Limpa (LC nº 135/2010), contém uma brecha que pode permitir
que governadores e prefeitos que perderam os mandatos não fiquem inelegíveis.
Essa
alínea c torna inelegíveis para
qualquer cargo:
o
Governador e o Vice-Governador de Estado e do Distrito Federal e o Prefeito e o Vice-Prefeito que
perderem seus cargos eletivos por infringência a dispositivo da Constituição
Estadual, da
Lei Orgânica do Distrito Federal ou da Lei Orgânica do Município, para as
eleições que se realizarem durante o período remanescente e nos 8 (oito) anos subsequentes ao término do
mandato para o qual tenham sido eleitos;
A Constituição do Estado de São Paulo
definia os crimes de responsabilidade do governador em seu art. 48, mas esse
artigo foi julgado inconstitucional pelo STF em 2011. Na ocasião, o Supremo considerou
que
A definição das condutas típicas
configuradoras do crime de responsabilidade e o estabelecimento de regras que
disciplinem o processo e julgamento dos agentes políticos federais, estaduais
ou municipais envolvidos são da competência legislativa privativa da União e
devem ser tratados em lei nacional especial (art. 85 da Constituição da
República) (ADI nº 2.220 – São Paulo/SP – rel. Min. Carmen Lúcia, Brasília, DF, 16 de
novembro de 2011. Diário de Justiça
Eletrônico, 7 dez. 2011).
Quanto
aos prefeitos, a responsabilidade deles é disciplinada no plano nacional pelo
Decreto-Lei nº 201/1967. No art. 1º, esse decreto traz um extenso rol de
condutas que configuram crimes de responsabilidade dos prefeitos municipais,
sujeitos ao julgamento do Poder Judiciário, independentemente do pronunciamento
da Câmara dos vereadores; no art. 4º, estão descritas
as condutas que configuram infrações político-administrativas dos prefeitos municipais,
sujeitas ao julgamento pela Câmara dos Vereadores, e sancionadas com a cassação
do mandato.
Poder-se-ia imaginar que o prefeito que teve o mandato cassado com base nessa lei – lei
nacional como quer o STF – ficaria inelegível por oito anos, por força do
disposto na alínea c do art. 1º, I, da Lei das Inelegibilidades.
Mas
não. Em decisão proferida em 2015 (Recurso Ordinário nº 39.477, Campo Grande/MS,
rel. Min. Gilmar Ferreira Mendes, 19 de maio de 2015) o TSE decidiu afastar a incidência da alínea c quando a cassação do mandato do
prefeito municipal se funda na prática de conduta prevista pelo DL nº 201/67, e
não em violação direta da Lei Orgânica do Município, ainda que esta última faça
remissão expressa à legislação específica.
A razão desse entendimento é que a letra da alínea c se refere a perda de cargo eletivo
especificamente por “infringência a dispositivo
da Constituição Estadual, da Lei Orgânica do Distrito Federal ou
da Lei Orgânica do Município”, e não por prática de conduta prevista em
lei nacional – no caso, o DL nº 201/67.
No caso caso referido, discutiu-se a legalidade de pedido de registro de
candidatura ao Senado, na eleição de 2014, de ex-prefeito cassado pela Câmara
Municipal pela prática de conduta prevista no DL nº 201/1967. O recorrente, que
assim como o Ministério Público pleiteava o indeferimento do pedido de
registro, com base na alínea c, sustentou
a “possibilidade
de conferir interpretação sistemática e teleológica visando preservar a
finalidade da norma”. Mas o relator, Min. Gilmar Mendes, manteve a decisão
agravada por seus próprios fundamentos, entendendo que “é assente neste
Tribunal que as restrições que geram as inelegibilidades são de legalidade
estrita, vedada interpretação extensiva”.
Isso
significa que há uma brecha na alínea c
do art. 1º, I, da Lei das Inelegibilidades. Ela deveria prever a incidência da
inelegibilidade também em caso de perda de mandato por infringência a lei nacional, e não apenas a “dispositivo
da Constituição Estadual, da Lei Orgânica do Distrito Federal ou
da Lei Orgânica do Município”. Até porque esses dispositivos, quando tratam de
crime de responsabilidade dos chefes do Poder Executivo estadual, distrital e
municipal, correm o risco de ser declarados inconstitucionais pelo STF, como
ocorreu com o dispositivo pertinente da Constituição Estadual paulista. Não bastasse
isso, com a atual redação da alínea c,
a perda de mandato por infringência à lei nacional que trata dos crimes de
responsabilidade de governadores e prefeitos (ainda a Lei nº 1.079/50 para os
governadores e o DL nº 201/1967 para os prefeitos), não gera inelegibilidade,
segundo o TSE, porque ela não prevê expressamente essa hipótese.