Pergunta formulada na seção Tendências/Debates do
jornal Folha de S.Paulo de ontem:
Foi correta a decisão do STF de diminuir poder do Tribunal
de Contas na aplicação da Ficha Limpa?
NÃO
AUTONOMIA GARANTIDA POR LEI, por Márlon Reis
O artigo 14 da Constituição Federal
determina que o legislador complementar tem o dever de estipular hipóteses de
inelegibilidade com o objetivo de proteger a moralidade administrativa e a
probidade para o exercício do mandato.
O Congresso Nacional estava em dívida com o
cumprimento dessa missão, o que levou a sociedade a apresentar um projeto de
lei de uma iniciativa popular. Nascia assim a Lei da Ficha Limpa.
Pela nova regra, chefes do Executivo que
sejam ordenadores de despesa e tenham suas contas técnicas rejeitadas ficam
impedidos de participar de novas eleições.
Quando um prefeito opera diretamente,
movimentando dinheiro público, despe-se de seu papel de governante para exercer
o de mero ordenador de despesas. Atua nessa condição toda e qualquer autoridade
cujos atos resultem em emissão de empenho, autorização de pagamento, suprimento
ou dispêndio de recursos da União, dos Estados e dos municípios.
O papel do chefe do Executivo não é
realizar tais atividades. Há exemplos, sobretudo nos municípios menores, de
prefeitos que levam consigo o talonário de cheques com o qual movimentam, sem
qualquer solenidade, os valores econômicos pertencentes ao erário.
Tais casos são inconcebíveis em uma
administração dotada de um mínimo de organização, formalismo e respeito às
normas.
A persistência dos prefeitos nas funções
descritas aqui pode ser explicada pela corrupção e pela cultura da concentração
de poderes.
Por isso, o legislador popular quis
desestimular tais manobras, fazendo com que a inelegibilidade incida desde o
momento em que o Tribunal de Contas se manifestou contra a aprovação.
Esse pronunciamento, dotado de força
decisória e apto a imputar ao gestor o dever de restituir os valores
indevidamente aplicados, deve ser capaz de gerar restrição à elegibilidade de
todos os responsáveis, inclusive os chefes do Executivo.
Contas de governo, ou políticas, devem
sujeitar-se a julgamento parlamentar; contas de gestão, ou técnicas, demandam
julgamento pelo Tribunal de Contas. Trata-se de lição primária no universo das
finanças públicas.
Mas ainda que tal regra fosse ignorada, não
se poderia abrir mão de outra perspectiva: a palavra do Tribunal de Contas foi
a escolhida pelo legislador para a definição da inelegibilidade. Foi esse o
critério objetivo, a marcar a vida de administradores ímprobos, determinado
pela Lei da Ficha Limpa, pouco importando, a esse respeito, quais os parâmetros
constitucionais para a apreciação final da matéria.
Assim como, nas condenações judiciais, a
Lei da Ficha Limpa se contentou com as proferidas por órgão colegiado, também
neste tema deu-se uma inovação, afirmando-se com clareza extrema que a
inelegibilidade do ordenador de despesas, esteja ele ou não investido no cargo
eletivo de chefe do Executivo, dependerá tão somente do pronunciamento negativo
do Tribunal de Contas.
MÁRLON REIS, advogado eleitoral, é cofundador do Movimento de Combate à
Corrupção Eleitoral e um dos idealizadores da Lei da Ficha Limpa