Causa estranheza para muitos o fato de a Lei das Inelegibilidades (LC
nº 64/1990) omitir a perda de mandato pelo presidente da República como causa
de inelegibilidade. Nas palavras de Tito Costa, “o Presidente e o
Vice-Presidente da República ficaram excluídos do rol desse tipo de
inelegibilidade, o que não deixa de ser estranho, pois representa um tratamento
diferenciado, por parte do legislador, em relação ao ocupante do mais alto
posto eletivo do país” (2004, p. 222).
De fato, as consequências jurídicas da perda do cargo público por
infringência da Constituição não são tratadas pela ordem jurídica brasileira
nos mesmos termos se quem perde o cargo é o presidente da República ou se são
os governadores, prefeitos e parlamentares nas três esferas.
Governadores, prefeitos e
parlamentares que perdem seus cargos por infringência de determinados preceitos
da Constituição Federal, ou de Constituições Estaduais ou de Leis Orgânicas
municipais, conforme o caso, tornam-se inelegíveis por oito anos, por força do
disposto na Lei das Inelegibilidades (Lei Complementar nº 64/1990, art. 1º, I, b e c).
Porém, a LC nº 64/1990 silencia quanto ao presidente da República.
A razão de ser dessa omissão é que as consequências da perda de mandato pelo
presidente da República estão previstas na própria Constituição.
De acordo com a cláusula de imunidade penal temporária contida no
art. 86, § 4º, da Constituição, o presidente da República, na vigência de seu
mandato, não pode ser responsabilizado por atos estranhos ao exercício de suas
funções.
Já certas condutas praticadas pelo presidente no exercício de suas funções podem vir a ser qualificadas como crimes de responsabilidade.
Como assinalam Luiz Alberto David Araújo e Vidal Serrano Nunes
Junior (2010, p. 354), os crimes de responsabilidade não são crimes, em sentido
próprio, mas, na verdade, constituem infrações político-administrativas, cuja
incidência enseja o chamado processo de impeachment.
De acordo com o art. 85
da Constituição, são crimes de responsabilidade os atos do Presidente da
República que atentem contra a Constituição Federal e, especialmente, contra: I - a existência da União; II - o livre
exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, do Ministério Público e
dos Poderes constitucionais das unidades da Federação; III
- o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais;
IV - a segurança interna do País; V - a probidade na
administração; VI - a lei orçamentária;
VII - o cumprimento das leis e das decisões judiciais.
O parágrafo único desse artigo estabelece que esses crimes devem
ser definidos em lei especial, que deve estabelecer as normas de processo e
julgamento. Até o presente momento, essas matérias são ainda regidas pela Lei
nº 1.079/1950.
A Constituição de 1988 estabelece que o Senado é competente para
processar e julgar o presidente e o vice-presidente da República nos crimes de
responsabilidade (art. 52, I), caso em que funcionará como presidente do Senado
o do STF, “limitando-se a condenação, que somente será proferida por dois
terços dos votos do Senado Federal, à perda do cargo, com inabilitação, por oito anos, para o exercício de função pública,
sem prejuízo das demais sanções judiciais cabíveis” (grifo nosso, art. 52,
parágrafo único).
Essa previsão é tradicional em nosso
direito, e em suas origens foi praticamente copiada da Constituição
norte-americana de 1787.
A
Constituição norte-americana de 1787, no art. I, seção 3, que trata do Senado, estabelece que: “Judgment
in cases of impeachment shall not extend further than to removal from office,
and disqualification to hold and enjoy any office of honor, trust or profit
under the United States: but the party convicted shall nevertheless be liable
and subject to indictment, trial, judgment and punishment, according to Law”.
Em tradução livre: “O julgamento em caso de impeachment
não deve se estender além da destituição do cargo, e da desqualificação para
ocupar e exercer qualquer cargo de honra, confiança ou lucro nos Estados
Unidos: mas o condenado deverá todavia ser responsabilizado e sujeito a
acusação, processo, julgamento e punição, de acordo com a Lei”.
Na primeira Constituição republicana
brasileira, de 1891, estava estabelecido no Capítulo III, que tratava do
Senado, que competia ao Senado julgar o presidente da República, nos termos e pela
forma por ela prescritos, não podendo “impor outras penas mais que a perda do
cargo e a incapacidade de exercer qualquer outro sem prejuízo da ação da
Justiça ordinária contra o condenado” (art. 33, § 3º).
Depois da Constituição de 1891, as
Constituições brasileiras que se seguiram continham disposições semelhantes
(1934, art. 57, § 7º; 1937, art. 86, § 1º; 1946, art. 62, § 3º; 1967, art. 44,
parágrafo único; 1969, art. 42, parágrafo único).
Previsão
similar foi mantida, como visto, na Constituição de 1988 (art. 52, parágrafo
único).
O
que se passou então, quando da elaboração da LC nº 64/1990, é que o legislador
complementar sequer cogitou tratar da inelegibilidade do presidente da
República que haja perdido o mandato por crime de responsabilidade. Apenas, posteriormente,
em 2010, a Lei da Ficha Limpa previu a inelegibilidade daquele que renuncia ao
mandato para evitar o impeachment (alínea k
do art. 1º, I, da LC nº 64/1990).
Isso
seguramente por ter o legislador complementar considerado que a matéria já
estava devidamente disciplinada na Constituição Federal, que ao prever a inabilitação
por oito anos já excluía o ex-presidente da possibilidade de se candidatar a
cargos eletivos durante esse período.
Do exame da tramitação no Congresso do projeto
de lei que deu origem à LC nº 64/1990 observa-se que não se cogitou de incluir
o impeachment do presidente da República entre as hipóteses de inelegibilidade:
A LC nº 64/90 foi originária do Projeto de Lei do Senado nº 21/1990
(Complementar), de autoria do senador Jarbas Passarinho [1].
Esse Projeto de Lei já não previa a inelegibilidade do presidente da República
que haja perdido o mandato; aliás nem mesmo a dos governadores e prefeitos –
apenas a dos membros do Poder Legislativo[2].
O projeto teve parecer favorável da Constituição de Constituição, Justiça e
Cidadania, na forma do substitutivo apresentado pelo senador Francisco
Rollemberg. Esse substitutivo previa a inelegibilidade “dos membros do
Congresso Nacional, das Assembleias Legislativas, da Câmara Legislativa e das
Câmaras Municipais que hajam perdido os respectivos mandatos”; e também do
“Governador e o Vice-Governador de Estado e do Distrito Federal, o Prefeito e o
Vice-Prefeito que perderam seus cargos eletivos”[3].
Esse formato foi mantido no Parecer nº 94, de 1990 da Comissão Diretora, que
apresentou a redação do vencido para o turno suplementar do substitutivo ao PLS
21/1990[4],
e no Parecer nº 95, de 1990, da Comissão Diretora, que apresentou a redação
final do PLS 21/1990. E foi mantido no texto final da Lei Complementar nº
64/1990 (alíneas b e c do art. 1º, I).
A
interpretação que tem prevalecido, e que é coerente com a referida origem
histórica do dispositivo, embora não seja unânime, é a de que a inabilitação é
mais restritiva de direitos do que a inelegibilidade. Enquanto a
inelegibilidade excluiria o indivíduo unicamente da candidatura a cargos
eletivos, a inabilitação vedaria o exercício de todas as funções públicas,
incluídos aí, além dos cargos eletivos, os cargos de provimento efetivo (por
concurso público) ou em comissão (de livre nomeação e exoneração), e os
empregos públicos (nas empresas públicas, regidos pela CLT).
Araújo e Nunes Junior (2010, p. 354)
reforçam esse entendimento ao afirmar que a teor do art. 52, parágrafo único,
da Constituição, “o presidente da República deve ser afastado do cargo, bem
como impossibilitado de ocupar o mesmo ou qualquer outro cargo público pelo
período de oito anos”.
Como
se sabe, na história recente do nosso país, o desfecho do processo que levou ao
impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff seguiu um rito discrepante da letra
expressa da Constituição em matéria de inabilitação. De fato, durante o
processo de impeachment, o presidente do STF, no exercício da função de
presidente do Senado, deferiu um pedido de destaque, e desmembrou em duas a
votação final do impeachment. Assim, foram votadas separadamente a cassação
propriamente dita e a inabilitação, o que resultou no impeachment de Dilma
Rousseff mas na rejeição da pena de inabilitação, o que permitiu a ela manter o
direito de ocupar cargos públicos.
Referências:
ARAÚJO, L. A. D.; NUNES JUNIOR, V. S. Curso de direito constitucional. 14 ed.
São Paulo: Saraiva, 2010.
COSTA, T. Recursos em matéria eleitoral. 8 ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2004.
[1] Senado Federal.
Secretaria de Informação Legislativa. Disponível em: <http://legis.senado.leg.br/legislacao/ListaNormas.action?tipo_norma=LCP&numero=000064&data=1990&SUBMIT1=Pesquisar>.
Acesso em: 2 maio 2016.
[2] Anais do Senado,
República, 1990, Livro 4, p. 1230. Disponível em:
<http://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/pdf/Anais_Republica/1990/1990%20Livro%204.pdf>.
Acesso em: 2 maio 2016.
[3] id., p. 1555.
[4] id., p. 1568.