Veja artigo publicado no site Jota.info:
A recente
declaração de inconstitucionalidade das doações de pessoas jurídicas às
campanhas eleitorais (previstas no antigo artigo 81 da Lei nº 9.504/1997)
proferida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) na ADI 4.650/DF, somada ao veto
presidencial ao art. 2º da Lei nº 13.165/2015 que regulava o mesmo tema, fez
nascer a dúvida sobre o efeito de tal proibição sobre as doações pretéritas de
pessoas jurídicas às campanhas eleitorais.
Até a
declaração de inconstitucionalidade pelo STF – que motivou o veto presidencial
na lei de reforma de 2015 -, as doações de pessoas jurídicas eram lícitas e
regradas, sendo submetidas a limites e vedações, bem como sanções, tais quais
multas, proibição de contratar e licitar com o Poder Público e inelegibilidade
dos dirigentes da empresa.
No STF, a vedação às contribuições de pessoas jurídicas às campanhas
eleitorais decorreu da declaração de inconstitucionalidade do art. 81,caput e
§ 1º da Lei nº 9.504/97, bem como da inconstitucionalidade parcial sem redução
de texto do art. 24 da Lei nº 9.504/97, na parte em que autorizava, a contrario
sensu, a doação por pessoas jurídicas a campanhas eleitorais, ambas com
eficácia ex tunc e salvaguardadas as “situações concretas
consolidadas até o momento da decisão” (termos do voto do relator, min. Luiz
Fux). Por não ter alcançado o número de votos exigido (oito), o STF não modulou
os efeitos da sua decisão, mas preservou as situações concretas consolidadas
até o momento da decisão.
Essas
situações concretas consolidadas são aquelas que foram regidas, no momento de
sua realização, pelos dispositivos que, à época, incidiam sobre as doações
eleitorais de campanha realizadas por pessoas jurídicas, regulares ou em
excesso. Duas são as hipóteses que podem ter ocorrido, então, no passado: 1)
cumprindo as regras, candidatos e doadores receberam e forneceram recursos ou
2) descumprindo as regras, arcaram com as consequências em vigor.
Quanto à
primeira hipótese, os candidatos que receberam recursos – considerados lícitos
à época – das pessoas jurídicas nas eleições pretéritas não podem ser punidos
pela inconstitucionalidade do financiamento de suas campanhas, mesmo que estas
tenham sido milionárias e fortemente baseadas nas contribuições de empresas,
porque as regras da época devem ser respeitadas.
Quanto à
segunda hipótese, os doadores pessoas jurídicas, ao descumprirem as regras,
preferiram arcar com a resposta legal então prevista: multa, proibição de
contratar e licitar com o Poder Público e, ainda, inelegibilidade dos seus
dirigentes. Essa resposta é o equivalente normativo ao previsto na regra de
permissão das doações de pessoas jurídicas. Isto é, se as regras de permissão
de doação de pessoa jurídica não maculam os atuais mandatários e estão a salvo
do efeito retrospectivo da inconstitucionalidade (por determinação expressa do
voto do min. relator e dos demais que formaram a maioria no STF), também o seu
equivalente normativo referente às doações ilegais (as multas e demais
consequências) fica a salvo.
É impossível fracionar, arbitrariamente, a chamada “situação concreta
consolidada”. Caso as multas, proibições de licitar/contratar e
inelegibilidades desaparecessem – porque a doação seria inconstitucional – isso
também levaria, ad terrorem, à inconstitucionalidade da
manutenção dos mandatos atuais, porque suas campanhas vitoriosas teriam sido
financiadas por recursos oriundos de fonte proibida. Por isso, agiu bem o STF
ao ressalvar as “situações concretas consolidadas”, que se subdividem, como
visto, nas (i) condutas que cumpriram as regras da época e (ii) nas condutas
que descumpriram as regras e, consequentemente, aceitaram a imposição das
reprimendas já expostas, pondo-as, ambas, a salvo dos efeitos da ADI n. 4.650.
Uma retroatividade “à la carte”, que preservasse as campanhas
eleitorais vitoriosas e eliminasse as sanções, ofenderia também o direito à
igualdade, a proibição da surpresa e a quebra da confiança. Ofenderia a
igualdade, porque a retroatividade não é benigna a todos os participantes das
campanhas eleitorais, que é uma competição, não podendo a retroatividade ser
discriminatória e privilegiar justamente os ofensores.
Os
candidatos que recusaram doações empresariais ilegais (por exemplo, a empresa
foi criada no mesmo ano das eleições, tendo o candidato a cautela de verificar
esse fato e recusar a doação) fizeram campanhas mais modestas, mas, ao menos,
confiavam com a aplicação rigorosa da resposta jurídica da época, que eram a
multa e demais consequências negativas aos doadores. Novamente, o jogo
eleitoral é uma competição e a lei da época valia para todos.
Além disso, a viragem jurisprudencial (doações das pessoas jurídicas
eram consideradas constitucionais até 2015) não pode retroagir surpreendendo a
todos e abalando a confiança no Estado de Direito. O efeito apenas ex
nunc da viragem hermenêutica em matéria eleitoral foi já reconhecido
pelo STF no RE n. 637.485/RJ, de relatoria do ministro Gilmar Mendes, o qual
tratou especificamente da cautela necessária na interpretação dessas viragens
em matéria eleitoral, uma vez que, na seara eleitoral, “a segurança jurídica
assume a sua face de princípio da confiança para proteger a estabilização das
expectativas de todos aqueles que de alguma forma participam dos prélios
eleitorais”(voto do Relator).
Para pôr fim
à polêmica, o Tribunal Regional Eleitoral em São Paulo (TRE-SP), em 20 de
outubro de 2015, apreciou tese sobre a perda de objeto das representações
contra doações acima do limite legal em curso, fundamentada na declaração de
inconstitucionalidade e na revogação expressa do artigo 81 da Lei das Eleições
pela Lei nº 13.165/2015. O TRE-SP, em acórdão da relatoria da des. Marli
Ferreira no Recurso eleitoral nº 21-46/2015, por unanimidade, afastou a tese da
perda do objeto da representação e manteve a condenação da empresa ao pagamento
de multa, respeitando, então, as situações concretas consolidadas.
Irretocável
é a decisão da Corte paulista, no primeiro precedente sobre o tema no Brasil.
Respeita-se a decisão soberana do STF, preservando-se a segurança jurídica e a
igualdade quanto aos fatos anteriores, regidos por norma tida por
constitucional até a decisão proferida na ADI 4.650/DF. Não se beneficia uns ou
outros, aplica-se a lei vigente à época dos fatos a todos, equanimemente,
preservando-se a regularidade democrática e a segurança jurídica eleitoral. Não
se alteram as regras do jogo após o término da partida.
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André de Carvalho Ramos é Procurador Regional Eleitoral do Estado de São Paulo,
Professor de Direito Internacional e Direitos Humanos da Faculdade de Direito
da Universidade de São Paulo.