Leia
artigos publicados no Jornal do Advogado, ano XLIII, nº 436, março de 2018:
SIM,
por Maria Paula Dallari Bucci*
Quem
estuda a história da República Velha no Brasil se depara com a maior vergonha
nacional, que foram as “eleições a bico de pena”. A fraude eleitoral era
pública e notória, mas conservava a legalidade formal, uma vez que tudo era
lavrado em papel.
Esse
é um traço da nossa cultura jurídica que há algumas décadas vem sendo desfeito,
com a adoção do voto eletrônico, em 1996. Como festejam importantes cientistas
políticos, “as fraudes eleitorais foram praticamente eliminadas”. Com o quarto
maior eleitorado do planeta, atrás apenas da Índia, Estados Unidos e Indonésia,
apesar do tamanho do território, as eleições são competitivas e os resultados
proclamados poucas horas depois do término da votação (Jairo Nicolau, Eleições
no Brasil, Zahar, 2012, p. 7). Fernando Limongi, José Antonio Cheibub e
Argelina Figueiredo têm a mesma opinião, observando que mesmo em eleições
“altamente polarizadas, a disputa eleitoral não levou à contestação consequente
da legalidade do processo eleitoral” (Participação política no Brasil, in Trajetórias das Desigualdades, Marta
Arretche, org., Ed. Unesp, 2015, p. 23).
Portanto,
não é necessário nem prudente alterar o regramento eleitoral que determinou a
adoção das urnas eletrônicas. Mas não é o que pensa o Congresso Nacional, ao
reintroduzir a impressão do voto, na Lei nº 13.165 (“minirreforma eleitoral” de
2015), no artigo 59-A: “No processo de votação eletrônica, a urna imprimirá o
registro de cada voto, que será depositado, de forma automática e sem contato
manual do eleitor, em local previamente lacrado. Parágrafo único. O processo de
votação não será concluído até que o eleitor confirme a correspondência entre o
teor de seu voto e o registro impresso e exibido pela urna eletrônica”.
Há
uma queda de braço em torno desses dispositivos, vetados pela então presidente
Dilma Rousseff, e posteriormente restabelecidos com a derrubada de veto. A
Procuradoria-Geral da República argui a sua inconstitucionalidade (ADI 5889),
com base em precedente do Supremo Tribunal Federal (ADI 4543, julgada em 2014).
Os maiores riscos, comprovados nas experiências piloto realizadas pelo Tribunal
Superior Eleitoral (TSE), dizem respeito ao anonimato e ao sigilo do voto. A
facilidade, por exemplo, de o eleitor fotografar a cédula com o celular para
comprovar o voto em alguém seria a materialização do “voto de cabresto
digital”, a trazer de volta as piores práticas do Brasil do século passado.
Além
disso, há os custos da impressão – nada desprezíveis –, que o TSE calcula em
cerca de 1,8 bilhão. Para se ter uma ideia da grandeza desse valor, ele
ultrapassa o montante do fundo eleitoral criado com a proibição do
financiamento empresarial de campanha, de R$ 1,7 bilhão.
Isso
não significa que não se possa aprimorar a segurança do voto eletrônico. Há
sistemas mais modernos criados para isso como o Helios Voting, desenvolvido no
Instituto de Tecnologia de Massachusets, dos EUA; pelo Grupo de Criptografia e
Segurança da Informação (https://heliosvoting.org). Esse sistema, de código
aberto, vem sendo adotado pela Universidade de São Paulo nas eleições de seus
dirigentes e foi definitivamente testado na escolha da lista tríplice de
reitor, em novembro de 2017, quando a coleta do voto de milhares de eleitores
foi feita integralmente on-line. Cada voto foi criptografado, como ocorre com
uma transação bancária, e a totalização foi feita automaticamente pelo sistema
(https://votacao.usp.br.info).
A
adoção das urnas eletrônicas pelo Brasil foi um gesto de ousadia que se revelou
um grande acerto para o desenvolvimento da nossa democracia. Esse passo deve
nos orgulhar e servir de inspiração para outras melhorias modernizadoras, não
para retrocessos. Melhor concentrar as energias nos avanços necessários na
propaganda política e no barateamento das campanhas, para impedir que se
perpetue a maior fonte da corrupção no país, que não está no voto eletrônico,
mas nos problemas de financiamento das eleições.
* Maria Paula Dallari Bucci é Professora da
Faculdade de Direito da USP
NÃO, por Augusto Tavares Rosa
Marcacini *
Em
2013, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que a impressão do voto, do modo
previsto na Lei nº 12.034/09, violava o sigilo da votação. Foi um julgamento
equivocado, como já escrevi anteriormente. Pela terceira vez, uma lei
determinou a impressão do voto no país e voltam-se, contra ela, as mesmas
críticas que ignoram a vasta literatura técnica já produzida mundo afora sobre
segurança do voto digital.
A
alegação de violação ao sigilo do voto parte de premissas errôneas sobre os
fatos. Não se trata de dar um recibo para o leitor levar consigo, mas, sim,
produzir um meio de recontagem que independa do sistema eletrônico. O print, que não identifica o eleitor, há
de ficar retido em algum compartimento lacrado, para posterior contagem.
A
razão para imprimir o voto é dar transparência à eleição. O que está impresso,
o eleitor viu. O que um software
registrou internamente, em meio digital, ninguém viu, e não é necessariamente o
mesmo que foi exibido na tela.
As
eleições brasileiras usam uma tecnologia vintenária, ultrapassada, banida em
outros países. Ao contrário dos boatos, não é admirada no resto do mundo. É conhecida
como Direct Recording Electronic Voting
Machine (DRE) e registra o voto apenas em meios eletrônicos. Os riscos
desse modelo são imensos, todos bem descritos por especialistas. O maior deles
é o de fraude interna, que, desde o início dessa aventura nacional, encontra-se
absolutamente imune a qualquer detecção externa. Se agentes internos se
corromperem e alterarem o software da
urna, é possível fraudar a eleição do Oiapoque ao Chuí, de vereador a
presidente da República, e não há qualquer meio de recontagem que permita
recuperar a real vontade do eleitor ou fazer uma auditoria independente. Tudo o
que existe para examinar é o registro digital no interior das máquinas,
registro esse que, se o software foi fraudado, é ele próprio o resultado da
fraude.
Quanto
a ataques externos, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) sempre negou
veementemente essa possibilidade. A Corte não permite, porém, testes de
segurança totalmente independentes para comprová-lo. E não se conhece sistema
digital imune a falhas.
Essa
versão oficial caiu por terra definitivamente após o último teste de segurança
que o TSE promoveu, convidando especialistas para tentar, embora sob muitas
restrições, atacar a urna. A equipe do professor Diego Aranha demonstrou que é
possível a execução de código arbitrário nas máquinas, atacando o flash card que nelas instala o software. Explicando: execução de código
arbitrário é o estágio máximo e final de um ataque informático, ponto a partir
do qual o invasor pode instalar qualquer coisa que quiser no sistema invadido,
seja um desviador de votos, ou o jogo Pac-man. É um escândalo que parece ter
sido ofuscado pelos demais escândalos que tomam conta do país ! Somente isso
pode explicar o fato de não estar sob os holofotes da imprensa. Na Holanda, em
2007, quando violação semelhante foi provada, voltou-se a usar cédulas de
papel. Na Índia, em 2013, evidência assim levou a suprema corte a determinar o
uso de trilhas físicas.
Mesmo
sem constatar falhas, a Suprema Corte alemã proibiu, em 2009, sistemas
informáticos opacos, como o nosso, que não permitem a cada eleitor conferir a
lisura do resultado. Voltou-se ao papel. Renomados experts em segurança da informação, como Bruce Schneier ou Ronald
Rivest (graças a este usamos assinaturas digitais nos processos eletrônicos)
apontam o uso de trilhas físicas como o único meio efetivo e viável de auditar
sistemas eletrônicos de votação.
Costuma-se
opor que a impressão permitiria a volta do voto de carreirinha, ou outros ardis
que campearam no Brasil rural de décadas passadas. Tal fraude, que não é um
destino inevitável, precisa cooptar 200 pessoas para desviar 200 votos. Para
comparar, um único flash card violado
instalará software corrompido em
cerca de 50 urnas. E uma fraude interna afetaria todo o país.
Usar
trilhas físicas, como o voto impresso, é a melhor garantia disponível de uma
eleição democrática: transparente, auditável e honesta.
* Augusto Tavares Rosa Marcacini é
advogado, livre-docente pela Faculdade de Direito da USP