A longa luta pela universalização do direito
de voto nos EUA teve nos desdobramentos dos eventos em Selma, no Estado do Alabama,
há exatos cinquenta anos, seu impulso mais significativo.
O dia 7 de março de 1965 ficou marcado pela
violenta repressão policial à marcha pacífica em favor dos direitos civis, marcha
essa que passou pela ponte Edmund Pettus. A repressão brutal da passeata, com
cassetetes e gás lacrimogêneo, foi exibida ao vivo pela TV, comoveu a população
dos Estados Unidos e marcou a história da democracia americana.
Até
o início dos anos 1960, ainda vigoravam em diversos Estados norte-americanos
mecanismos de exclusão eleitoral da população afro-descendente. Esses
mecanismos consistiam não apenas em regras jurídicas discriminatórias, mas
também em práticas violentas e de retaliação econômica, que bloqueavam os
avanços. Na cidade de Selma, em especial, dos 15 mil habitantes, apenas 300
tinham direito de voto.
Duas
semanas depois dos eventos em Selma, milhares de pessoas, lideradas pelo pastor
Martin Luther King, saíram novamente de Selma, para seguir até Montgomery, a 90
Km de distância, onde chegaram em um longo cortejo, após vários dias de uma
marcha também histórica.
Nesse
momento, em dramática mensagem ao Congresso, o presidente Lyndon Johnson
repetiu o slogan do movimento pelos direitos civis, We shall overcome, para pedir leis mais drásticas em matéria de
direito de voto.
Em
agosto de 1965, o presidente Johnson sancionou o Voting Rights Act.
As
medidas mais inovadoras estavam contidas nas seções 4 a 9, previstas para
vigorar apenas por 5 anos e aplicáveis apenas aos Estados que impusessem
condições discriminatórias para alistamento eleitoral e voto e nos quais menos
da metade da população em idade de votar tivesse votado na eleição presidencial
de 1964. Na prática, os Estados visados eram Alabama, Geórgia, Louisiana,
Mississipi, Carolina do Sul, Virgínia e Carolina do Norte.
A seção 4 da Lei
proibia os testes de leitura e escrita e outras medidas discriminatórias. As
seções 6 a 8 autorizavam o governo federal, em determinadas circunstâncias, a
nomear observadores para assegurar que a administração do processo eleitoral
não fosse discriminatória. Para impedir a adoção de novas medidas
discriminatórias, quaisquer mudanças na legislação relativa aos critérios para
se alistar como eleitor tinham de ser submetidas à aprovação de autoridades
federais.
Quando o prazo de
vigência das medidas temporárias chegou ao fim, elas não só foram renovadas,
mas reforçadas e ampliadas. Em 1975, os testes de leitura e escrita foram
definitivamente banidos em todo o país, e as demandas judiciais com base na Lei
foram facilitadas por novas medidas em favor do demandante.
Porém, em 2013, a
Suprema Corte considerou que o país havia mudado e que a aprovação de
autoridades federais para mudanças na lei eleitoral não era mais necessária.
Ato contínuo, diversos Estados, do Sul em especial, passaram a editar leis
restringindo o direito de voto por meio de exigências de documentação oficial
com foto para identificação do eleitor, medida que atinge mais duramente as
minorias raciais.
Nas
celebrações dos 50 anos do “domingo sangrento”, o presidente Barack Obama
discursou declarando que “o racismo ainda lança sua longa sombra sobre nós”.
Do belo discurso, que ocorreu simbolicamente
na ponte Edmund Pettus de Selma, vale reproduzir o trecho mais significativo em
matéria de direito eleitoral :
E
com esforço, nós podemos proteger a pedra fundamental da nossa democracia para
a qual tantos marcharam por sobre esta ponte – esta é o direito de voto. Agora mesmo, em 2015, cinquenta anos depois de
Selma, há leis por todo este país concebidas para restringir o direito de voto.
Enquanto falamos, mais leis dessas estão sendo propostas. Ao mesmo tempo, a Lei
dos Direitos de Voto, na qual culminou tanto sangue, suor e lágrimas, o produto
de tanto sacrifício diante de violência deliberada, segue enfraquecida, seu
futuro sujeito a rancor partidário.
Como
é que pode ? A Lei
dos Direitos de Voto foi uma das
conquistas que coroam a nossa democracia, o resultado de esforço Republicano e
Democrático. O presidente Reagan sancionou sua renovação durante seu mandato. O
presidente Bush sancionou sua renovação durante seu mandato. Cem membros do
Congresso estão aqui hoje para honrar as pessoas que estavam dispostas a morrer
pelo direito que ela protege. Se nós quisermos honrar este dia, deixemos esses
cem voltarem a Washington, e reunirem quatrocentos ou mais, e juntos, assumam o
compromisso de fazer sua a missão de restaurar essa lei este ano.
É
claro, nossa democracia não é tarefa do Congresso apenas, nem nos tribunais
apenas, nem do presidente apenas. Se cada nova lei de supressão de direito de
voto for derrubada hoje, nós teremos ainda uma das menores taxas de
comparecimento às urnas entre os povos livres. Cinquenta anos atrás, o
alistamento eleitoral aqui em Selma e em grande parte do Sul significava ter
que adivinhar o número de balas de goma num jarro ou de bolhas numa barra de
sabão. Significava por em risco sua dignidade, e às vezes, a sua vida. Qual é a
nossa desculpa hoje para não votar ? Como podemos descartar com tanta
indiferença o direito pelo qual tantos lutaram ? Como podemos desperdiçar tão
completamente nosso poder, nossa voz, na criação do futuro da América ?