Leia os dois artigos publicados na seção Tendências/Debates do jornal Folha
de S.Paulo do dia 11.03.2017:
SIM, por César Dario Mariano da Silva
APARÊNCIA LÍCITA POR VEZES OCULTA PROPINA
Nesta semana ocorreu o julgamento do
inquérito nº 3.982 no Supremo Tribunal Federal, cujo resultado norteará
diversas ações penais em trâmite no próprio Pretório Excelso e em outras
instâncias do Poder Judiciário.
Discutiu-se se doações eleitorais formalmente
declaradas à Justiça Eleitoral podem constituir crime de lavagem de dinheiro
quando travestidas de legalidade, mas frutos de propina. Pelo apertado placar
de 3 votos a 2, foi reconhecida a ocorrência do crime de lavagem de dinheiro na
hipótese.
O tribunal tomou a decisão correta. Não há
como confundir lavagem de dinheiro com a infração penal antecedente, no caso
corrupção (ativa e passiva). Na lavagem de dinheiro, dá-se aparência de
legalidade a bem, direito ou valor que, na realidade, é proveniente, direta ou
indiretamente, de infração penal (crime ou contravenção).
Por meio de artifícios, atualmente muito
bem empregados, procura-se legalizar e colocar em circulação algo que é ilegal,
produto ou proveito de infração penal.
Aquele que efetua doações eleitorais
aparentemente legais com o propósito de que o agente público que a receba
interceda em seu favor pratica, juntamente com o funcionário público, crime de
corrupção (ativa e passiva) e lavagem de dinheiro.
O corruptor faz a doação. O corrupto a
recebe e realiza a necessária declaração à Justiça Eleitoral. O dinheiro, que é
sujo (produto de corrupção), passa a ser empregado nas despesas de campanha do
corrupto, dando-lhe aparência de legalidade.
Além dos crimes de corrupção (ativa e
passiva) praticados por quem deu a vantagem indevida e por quem a recebeu,
subsiste íntegro o crime de lavagem de dinheiro, que é autônomo em relação ao
delito antecedente.
Na corrupção há, em regra, acordo entre o
corruptor e o corrupto. O corruptor, ao prometer, oferecer ou dar a vantagem
indevida, o faz para que o corrupto o favoreça em ato de seu ofício. O corrupto
solicita ou recebe a vantagem indevida em razão de suas funções. O intuito de
quem dá a vantagem e de quem a solicita ou recebe é o mesmo: beneficiar-se
ilegalmente.
Ocorre que essa vantagem indevida dada ao
agente público precisa ser legalizada para que possa ser empregada livremente.
O instrumento criado para isso é a engenhosa doação eleitoral fictícia, que
caracteriza a dissimulação constante do tipo penal de lavagem de dinheiro.
Por isso, ouvimos sempre a mesma
justificativa de alguns políticos acusados por delatores: a doação recebida é
legal, tendo sido declarada à Justiça Eleitoral.
Essa assertiva não procede. A forma é
legal, mas não o seu conteúdo. Não se trata de doação, mas de propina
disfarçada. O dinheiro, que é produto de crime, teve a origem
dissimulada/ocultada e foi colocado em circulação para o pagamento de campanha
eleitoral.
Há dois crimes em concurso material. O
antecedente (corrupção) e a lavagem de dinheiro, cometidos em momentos
distintos e com condutas próprias.
Com efeito, muito embora realizada a
prestação de contas dos valores recebidos, ocorreu, uma vez que a origem do
dinheiro é criminosa, sua dissimulação/ocultação e consequente crime de lavagem
de dinheiro, que não se confunde com o delito de corrupção, que é seu
antecedente, não havendo entre eles relação de meio e fim.
CÉSAR DARIO MARIANO DA SILVA, mestre em direito das relações sociais pela PUC/SP -
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, é promotor de Justiça em São
Paulo
NÃO,
por Walber de Moura Agra
A ERA DA PRESUNÇÃO DA CULPABILIDADE
Chamou a atenção de todos os operadores jurídicos o recebimento,
pela segunda turma do Supremo Tribunal Federal, da denúncia realizada pela
Procuradoria-Geral da República contra o senador Valdir Raupp (PMDB-RO), em
decorrência da doação de R$ 500 mil por parte da construtora Queiroz Galvão
para sua campanha ao Senado em 2010.
Alegou-se que o valor seria "propina
disfarçada", com origem em desvios na diretoria de abastecimento da
Petrobras.
Notabilizou o mencionado fato jurídico o
fato de a doação ser lícita, registrada tanto pelo doador quanto pelo
donatário. Ou seja, a mencionada quantia proveio de uma conta específica da
campanha, dentro dos limites estipulados para as pessoas jurídicas na ocasião.
Isso é comprovado pela emissão de um recibo
eleitoral, assinado pelo doador e com a especificação do valor doado. A
operação foi mencionada na prestação de contas do candidato, aprovada pelo
Tribunal Superior Eleitoral.
Então, depois de longo tempo do trânsito em
julgado da aprovação de contas, resolve o STF, calcado em meros indícios,
aceitar uma denúncia que se baseia em ilações.
Alegou-se, igualmente baseado em
suposições, que o parlamentar deveria ter ciência da "possível"
ilicitude da doação e que haveria um pacto para a dilapidação do erário.
Parte-se do postulado kafkiano de que um
cidadão tem a obrigação -não legal, mas jurisprudencial- de saber a origem do
dinheiro que está recebendo para sua campanha eleitoral. Não basta seguir todos
os parâmetros ofertados pela legislação; necessita-se perscrutar, como uma
pitonisa, a origem do dinheiro arrecadado.
Dessa forma, mesmo sem dolo e sem
possibilidade alguma de obtenção de elementos mínimos de conhecimento acerca da
gênese financeira dos recursos, imputa-se uma exigência impossível de ser
satisfeita.
Partindo-se do pressuposto de que o
dinheiro proveio de uma fonte ilícita, como provar que o parlamentar tinha
consciência dessa condição? A legislação o obriga a investigar a origem do
numerário doado? Obviamente, não.
O que se está tentando é uma alquimia
jurídica, impondo uma obrigação baseada exclusivamente na vontade do inquiridor
-quase um Torquemada, cuja voracidade em acusar encontrou um contraponto em
Beccari, pensador do século 18 que seria hoje um revolucionário por sua visão
iluminista do direito.
Não se trata pura e simplesmente da
flexibilização do princípio da presunção de inocência, que pode ser até
defensável em determinadas situações. Representa a entronização do princípio da
presunção da culpabilidade.
Assim, mesmo sem a existência de provas,
permite-se a abertura de processo judicial contra um cidadão com base em
indícios, sem maior análise fática, ainda que essa decisão contrarie os
fundamentos de um acórdão que analisou os gastos da campanha.
Atualmente, assiste-se a uma triste tentativa
de criminalizar vários aspectos da política, tornando-a uma atividade quase
abjeta. A questão que se avoluma é que não existe democracia sem política.
Quando se despreza a discussão sobre a
organização do Estado, abre-se a porta para o arbítrio e os regimes
ditatoriais.
Configura-se preocupante, em um país dotado
de uma Constituição cidadã, o ultraje às garantias constitucionais e a quebra
casuística do princípio da legalidade. Esse moralismo exacerbante que sufoca a
sociedade brasileira é deveras perigoso, à medida que a segurança jurídica e os
fundamentos da República são cerceados.
Deve-se chamar a atenção para que esse
jacobinismo moral não repita os erros do passado, uma vez que seu próprio
mentor, Robespierre, terminou padecendo, sem o justo devido processo legal, da
guilhotina que tanto defendeu.
WALBER DE MOURA AGRA, doutor em direito pela Universidade Federal de Pernambuco
e pela Facultà degli Studio di Firenze (Itália), é procurador do Estado de
Pernambuco