O gerrymandering, manipulação dos
contornos dos distritos eleitorais, constitui uma nefasta tradição nos EUA. É
praticado tanto pelo partido Republicano quanto pelo Democrata, quando têm
maioria no Poder Legislativo estadual [1].
De
fato, na maior parte dos Estados norte-americanos é o Legislativo estadual que
tem a atribuição de redesenhar os distritos, para a eleição dos parlamentares tanto
federais quanto estaduais, todos eleitos pelo sistema majoritário.
A
redistritalização ocorre a cada dez anos, depois do censo decenal, para
assegurar que os distritos tenham todos aproximadamente o mesmo número de
habitantes, em razão do princípio “uma pessoa, um voto”.
Assim, em 2012, depois do censo
decenal de 2010, o Poder Legislativo do Estado do Alabama, de maioria republicana,
redesenhou os distritos para a eleição dos 105 membros da Assembleia Legislativa
do Estado (Alabama House of
Representatives) e para a dos 35 senadores estaduais.
Os responsáveis no Estado por essa
redistritalização declararam que seguiram estritamente três critérios: observância
do princípio “uma pessoa um voto”, que levou os recém-desenhados distritos do
Alabama a não diferir mais do que 2% uns dos outros em número de habitantes; manutenção
do número anterior de distritos em que a maioria dos habitantes pertence a
grupos minoritários (majority-minority
districts) ; manutenção da porcentagem anterior de afrodescendentes no
interior de cada distrito.
Eles alegaram que a manutenção da
porcentagem anterior de afro-descendentes em cada distrito teve por motivo a
observância da seção 5 da Lei dos Direitos de Voto, que estabelece o princípio
da não-retrogressão.
Na ação proposta em juízo, essa
combinação de metas foi contestada sob o argumento de que, com as mudanças demográficas
que levaram ao declínio da população afrodescendente em tais distritos, ela teria
acarretado a inclusão de muitos afrodescendentes nesses distritos em que uma
ampla maioria afrodescendente alegadamente precisava ser mantida intocada. A
tal ponto que a manobra impediu que, com maiorias menos expressivas, o
eleitorado afrodescendente vencesse num número maior de distritos.
Em outras palavras, o resultado
dessa combinação, no contexto do Estado do Alabama, teria sido o de concentrar um
maior número de afrodescendentes, que são eleitores do partido Democrata, num
número constante de distritos, impedindo a ampliação do número de distritos de
maioria afrodescendente e assegurando maioria branca e republicana na maior
parte dos distritos.
A questão central perante a Suprema
Corte foi a de saber se a Seção 5 da Lei dos Direitos de Voto impunha a
manutenção das mesmas porcentagens altas de eleitores pertencentes a grupos
minoritários nesses distritos.
A
questão era estabelecer o quão majoritário um grupo minoritário precisa ser, no
interior de um dado distrito, para que nele haja membros dessa minoria em
número suficiente para o seu candidato vencer a eleição no distrito, e assim
assegurar a representação das minorias raciais no Parlamento, como exige a
Seção 2 da Lei dos Direitos de Voto.
Toda
dificuldade está em que, se os membros da minoria não forem numerosos o
suficiente, seu candidato perde a eleição e essa minoria não consegue ser
representada no Parlamento; porém, por outro lado, se essa minoria for
excessivamente numerosa, pode exceder em muito o número necessário para vencer
no distrito, e por conseguinte esvaziar outros distritos de eleitores pertencentes
a minorias raciais.
Para
a tese da ilicitude do gerrymandering
ser vitoriosa em juízo, precisaria ficar demonstrado que a raça foi o fator predominante na redistritalização,
superando em relevância os objetivos tradicionais, que são meramente
partidários. Há quem considere essa distinção pouco nítida e até artificial,
porque nos Estados do Sul, como o Alabama, os eleitores afrodescendentes tendem
a votar consistentemente no partido Democrata e os brancos, no partido
Republicano.
A
Suprema Corte, em decisão proferida no dia 25 de março de 2015, por 5 votos a
4, deu provimento ao recurso interposto contra decisão de uma corte federal que
havia decidido que a proposta para o redesenho dos distritos eleitorais no
Estado do Alabama não violava a Constituição nem a Lei dos Direitos de Voto.
A
maioria dos juízes da Suprema Corte entendeu que a corte inferior errou ao
considerar que a proposta de redistritalização do Estado do Alabama não
constituía gerrymander do tipo racial.
Isso porque a corte inferior teria levado em consideração apenas o Estado como um todo e não distrito por
distrito. Assim, remeteu o caso de volta à corte inferior para que reconsidere
o caso, desta feita examinando o desenho distrito por distrito.
A
Suprema Corte sugeriu com ênfase que em pelo menos alguns dos distritos teria
havido gerrymander do tipo vedado
pela Constituição. Ela além do mais afastou dois dos mais importantes argumentos
lançados pelo Estado do Alabama: em primeiro lugar, a Corte considerou que a
interpretação dada pelo Estado, de que a Seção 5 da Lei dos Direitos de Voto
exigiria a perpetuação da porcentagem de eleitores afrodescentes em certos
distritos, constitui uma forma mecânica de interpretar a lei, levando à sua
própria violação.
Segundo,
a alegada intenção do Estado de assegurar igual número de habitantes em todos
os distritos não pode, de acordo com a decisão da Suprema Corte, ser o fator
predominante para a redistritalização, porque se trata de um pressuposto
necessário, anterior à definição dos critérios.
Por fim, a Suprema Corte considerou haver forte evidência de que a raça
teria sido o fator predominante no desenho de pelo menos um dos distritos.
[1] Sobre o gerrymandering nos EUA discorri no meu
livro Direito Eleitoral Comparado –
Brasil, Estados Unidos, França (Saraiva, São Paulo, 2009), nas págs.
285-289, 293-295, 296-297 e 302.