Leia
artigo publicado ontem no Conjur :
As eleições de 2018 trarão inúmeras novidades para
o Direito Eleitoral nacional. Tem-se falado na inauguração de uma espécie de
era do Direito Eleitoral Digital diante de, pelo menos, duas novidades
importantes: a previsão do financiamento coletivo das campanhas eleitorais
(art. 23, § 4º, IV, da Lei 9.504/97) e do impulsionamento de conteúdo pago
através da internet (art. 57-B da Lei 9.504/97)[1].
O financiamento coletivo pode abrir espaço para uma
cultura de financiamento cidadão do processo eleitoral, reduzindo o “caixa
dois” eleitoral e estabelecendo um vínculo mais forte entre o eleitor e o
candidato. É, portanto, esperançoso. Já a utilização amplificada da internet e
de aplicativos digitais trazem o assombro das chamadas notícias falsas (fake
news), que impõem enormes desafios para a esfera do debate público e do
regime democrático.
Não
têm sido poucas as eleições mundo afora que têm experimentado o gosto amargo do
mundo digital, primeiramente visto como libertador e, agora, como ameaçador.
Esses são temas que têm de ser enfrentados, mas, no Brasil de hoje, o tempo é
de retrocesso.
Como o passo do caranguejo, em 2018, parece que
andamos para trás. E com um misto de olhar casuísta e oportunista muitos têm
mirado a Lei da Ficha Limpa. Relembremos: a Lei Complementar 135/2010,
sancionada pelo então presidente Lula, resultou de um extraordinário movimento
da sociedade civil brasileira[2] no
sentido de fazer o Congresso Nacional conferir eficácia ao disposto art. 14, §
9º, da Constituição Federal[3],
segundo o qual os impedimentos eleitorais deveriam levar em consideração também
a vida pregressa dos candidatos, e que, não obstante, até 2010 quedava sem
eficácia normativa entre nós.
Com
apoio decisivo da bancada do Partido dos Trabalhadores e do campo da esquerda,
e após a decisão do plenário do Supremo Tribunal Federal nas Ações
Declaratórias de Constitucionalidade 29 e 30 e na Ação Direta de
Inconstitucionalidade 4578, em julgamentos históricos acompanhados por todo o
país, a Lei da Ficha Limpa passou pelo teste da constitucionalidade e tem
regido as eleições brasileiras desde 2012.
Com
base nessa lei, a Justiça Eleitoral tem barrado inúmeros candidatos, com
especial destaque àqueles que ostentam condenações por atos de improbidade
administrativa e algumas espécies de crimes, reconhecidas por órgão judicial
colegiado ou com trânsito em julgado. Em suma, impede a legislação que
malfeitores assim declarados pela Justiça competente não possam, por um certo
período, representar o povo.
Não parece má a regra, que, ademais, vem de cumprir
a Constituição. Eloquente pela sua importância histórica, o impedimento
reconhecido do então candidato e governador José Roberto Arruda no Distrito
Federal, que, flagrado com dinheiro vivo de corrupção, estaria hoje no
exercício do mandato político[4],
não fosse a incidência da referida lei. Lamentavelmente, aliás, casos de
políticos flagrados com malas de dinheiro têm crescido exponencialmente nos
últimos tempos, o que vem apenas reforçar a missão da Lei da Ficha Limpa na
democracia brasileira.
Surpreende
assim o ataque revisionista que vem sofrendo essa legislação. Pretender
configurar a opinião pública a partir da ideia de que as eleições teriam
poderes absolutos é incorrer em discurso político perigoso. O voto popular pode
muito, mas não pode tudo. A Constituição tem regras que devem ser observadas,
inclusive pelo povo.
Os
caminhos institucionais são longos e os atalhos, perigosos. Atalho
institucional foi tomado no impeachment de 2016, e parece que o campo político
prejudicado quer dar o troco. Mas isso leva a uma espécie de marcha da
insensatez, cujo resultado nunca foi bom para a institucionalidade.
Quando olhamos para a Constituição e para as leis
como meros empecilhos a serem removidos por uma razão política, o edifício
institucional começa a ruir, e sua queda afetará a todos. Nesses momentos, é
bom ficarmos atentos. Leio em Ferrajoli[5],
o eminente professor florentino, que: “La democracia implica necesariamente
el derecho. Bien puede haber, ciertamente, derecho sin democracia. Pero no
puede haber democracia sin derecho”.
A
Constituição brasileira de 1988 completará 30 anos de vigência em outubro deste
ano, justamente com as eleições gerais de 2018, e é preciso garantir seu vigor
para que episódios como o impeachment de 2016 restem isolados. Precisamos dela
para superar a crise. Precisamos dela quando a polarização política tem produzido
um discurso ideológico que afronta os valores constitucionais que ela abriga, e
que, por serem fundadores do pacto democrático de 1988, estão acima das
maiorias eventuais. Reverenciar a Constituição Federal e seus valores é um
dever cidadão.
A
Lei da Ficha Limpa, como qualquer legislação, talvez tenha excessos. Pode ser
aperfeiçoada. Mas não é hora de mexer nela. Tem ela cumprido um papel
fundamental numa sociedade que precisa melhorar sua representação política.
* Pedro Barbosa Pereira Neto é membro
do MPF e associado ao MPD.
[2] A
Lei da Ficha Limpa tem matriz na democracia direta, já que derivou de
iniciativa popular de lei (CF, art. 14, III).
[5] Luigi
Ferrajoli, Principia iuris, Teoria del derecho y de la democracia, 2. Teoria de
la democracia, Editorial Trotta: Madrid, 2011, p.17.