O MCCE (Movimento de Combate à
Corrupção Eleitoral), rede de organizações da sociedade civil brasileira que
liderou a gigantesca mobilização popular havida em favor da edição da Lei da
Ficha Limpa, vem a público uma vez mais defender a aplicação plena, integral e
efetiva dessa Lei de grande importância para a legitimidade do processo
democrático em nosso País.
Sempre
afirmamos, e o Supremo Tribunal Federal admitiu essa tese desde os primeiros
julgados a respeito em 1990, que as inelegibilidades não têm natureza jurídica
de pena, mas de condição. Mesmo na hipótese dos condenados por abuso de poder,
a sanção a que estão submetidos é a de cassação do diploma eventualmente
obtido, sujeitando-se por força da lei, não da condenação, a inelegibilidade
por certo tempo.
Ao
proferir a sentença, o juiz apenas declara o que ocorre por força de lei: a
inelegibilidade daí decorrente. Por isso, ao sobrevir lei que modifique o
período de inelegibilidade, esse novo lapso temporal passa a ser aplicado, já
que está alterada a condição a ser observada no momento do registro da
candidatura.
Se
inelegibilidade decorrente da condenação por um crime em âmbito colegiado
pode ser ampliada por lei posterior, o mesmo ocorre com os condenados por abuso
de poder nas eleições, não havendo razão para dar tratamento jurídico distinto
a situações que, sob a égide da Lei de Inelegibilidades, possuem a mesma
natureza.
O
tema reveste-se da maior urgência e relevância, tendo em vista a existência de
decisões proferidas recentemente no sentido de que os políticos que cumpriram o
prazo anterior de inelegibilidade, de três anos, devem ter a elegibilidade
restaurada antes mesmo do cumprimento do novo prazo, de oito anos.
Nunca
é demais lembrar que a questão foi tratada de modo aprofundado pelo próprio
STF, quando decidiu, em 2012, pela constitucionalidade da Lei. De fato, no
julgamento da ADI nº 4.578 e das ADCs nºs 29 e 30, o relator, Min. Luiz Fux,
invocou a lição de J. J. Gomes Canotilho, que distingue a retroatividade
autêntica, na qual a norma possui eficácia ex tunc, gerando efeitos
sobre situações pretéritas, e a retroatividade inautêntica ou
retrospectividade, na qual a norma atribui efeitos futuros a situações ou
relações já existentes. Apenas a retroatividade autêntica seria vedada pela
Constituição.
Em
decisões posteriores, o STF consolidou o entendimento de que o agravamento do
regime jurídico eleitoral, com imposição do novo prazo de inelegibilidade a políticos
que já haviam cumprido o prazo anterior, não constitui afronta ao princípio da
irretroatividade das leis.
Desse
modo, afigura-se ilegítima a expectativa de candidatura do indivíduo enquadrado
nas hipóteses legais de inelegibilidade. Isso porque não se pode invocar
direito adquirido ao regime de inelegibilidades, nem autoridade da coisa
julgada, eis que as condições de elegibilidade, assim como as causas de
inelegibilidade, devem ser aferidas no momento da formalização do pedido de
registro de candidatura, momento esse posterior à entrada em vigor da Lei da
Ficha Limpa.
Além
de ilegítima, referida expectativa afronta a exigência constitucional de
moralidade para o exercício do mandato, considerando a existência de condenação
proferida por órgão colegiado, motivada pela prática de condutas da maior
reprovabilidade social.
O
que importa ressaltar, nesse passo, é que não há arbitrariedade nas causas nem
no prazo de inelegibilidade previsto pela Lei das Inelegibilidades, com redação
dada pela Lei da Ficha Limpa. No que se refere especificamente ao prazo, ao
longo dos vinte primeiros anos de vigência da LC 64/90, a consciência jurídica
nacional aos poucos foi se abrindo para a realidade de que o anterior prazo de
inelegibilidade, de apenas três anos, era excessivamente curto e não atendia à
exigência constitucional de proteção da moralidade para o exercício do
mandato.
Sendo
assim, os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade estão plenamente
atendidos pela Lei da Ficha Limpa. O sacrifício à liberdade individual de
candidatar-se a cargo público eletivo não supera os benefícios socialmente
desejados em termos de moralidade e probidade para o exercício de referido munus
público.
Se a Declaração Universal dos Direitos Humanos afirma o
direito de acesso aos cargos e funções públicas, o faz claramente para evitar a
perseguição de opositores do governo, ou a imposição de condições de
elegibilidade que repugnam à consciência jurídica, como o auferimento de
determinada renda ou o pertencimento a classe social ou casta, critérios que
evidentemente nada têm a ver com o anseio de moralidade contido na Lei da Ficha
Limpa.
O que se espera do Supremo Tribunal
Federal, e aí fazemos um apelo especial ao seu Presidente o Ministro Ricardo
Lewandowiscki e aos demais Ministros, é que cumpra dignamente sua missão de
guardião da Constituição, e não retroceda nas conquistas da cidadania no
sentido do aperfeiçoamento do nosso processo democrático.